Rebecca Loise: Engordei o sol noturno (2022)

Rebecca Loise nasceu em Dourados, Mato Grosso do Sul, em 1989. É escritora, psicóloga, psicanalista, artista da cena e do corpo. Graduada em Psicologia e mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente atende em consultório on-line, é colunista do Jornal Folha de Dourados, atua, performa e dedica-se à área de pesquisa e de criação artística em Arte & Psicanálise. Engordei o sol noturno (Urutau, 2022) é seu primeiro livro. Site: www.rebeccaloise.com



Os poemas a seguir foram selecionados do livro Engordei o sol noturno (Urutau, 2022).


HÁ UM NÓ NA GARGANTA DO SILÊNCIO

Se eu pudesse
entregar a você
o meu silêncio
com as mãos
em concha
,
seríamos
nós
um
oceano
pacífico
.
Mas

um

na
gar
gan
ta
do

Silêncio
!
É o grito
do místico
suicida
.
Em pleno mar
de ondas bélicas
afogou-se
pela âncora
de um navio-fóssil
.
Ninguém
nunca mais
disse nada
no enterro
.
A lápide
gravada
na pedra da
costa da praia
.
Pescada
pela dor
o aviso da
garrafa
:
Silêncio
é a palavra
que mais dura
na boca
.



ENGORDEI O SOL NOTURNO

Às vezes eu ando meio noite
De tempos em ventos
ando meio dia
até quando o relógio
grita: — É meia-noite!

Dei de comer e beber
ao sol noturno
Assim como Cecília
deu de comer
aos pássaros
e deu de beber
à terra

A palavra tem
mais fome
e mais sede
do que alguém
que vive em carne
identidade e osso

Dei de comer
palavras para não
morrer feito gente
que morre sem alma

A íntima idade do tempo
eu alimento quanto mais
palavras eu como
Nem meia noite nem meio dia
às vezes ando meio sem chão
e caio de boca numa poesia



A MULHER TEM UM CORPO QUE ABORTA

Como um corpo vivo guarda
uma morte dentro do ventre?

Se porcentagem servisse para calcular alguma
noção do infinito das verdades que há no mundo
começaria anunciando que vinte por cento das gestações
terminam nos primeiros meses
A mulher tem um corpo que aborta

Aconteceu com sua mãe
Aconteceu com a mãe da sua mãe
Aconteceu com a mãe da sua avó
Aconteceu com a mulher de Zeus
Aconteceu com você, quando não veio ao mundo
Aconteceu com a vizinha, professora, prima
cozinheira, juíza, médica, diarista
amiga da amiga
Aconteceu com nove semanas e quatro dias

Certa vez perguntaram, quando já estava
acamada: quantos filhos?
Ela respondeu seis,
mas nasceram quatro.
A mulher tem um corpo que aborta

Todo mês a mulher tem um encontro
com a sua natureza
não importa a cidade
compromisso — casamento
prazo — verão — trânsito
independente dos filhos vivos
da pílula ou da histerectomia
Se não sangra para fora
sangra por dentro

Durante uma vida, a mulher passa mais
de dois mil e duzentos e oitenta dias provando a sua fertilidade
A lua minguando, a lua nova
A lua crescendo, a lua cheia
Uma lua para cada quatrocentos e cinquenta e seis ciclos

No alto da noite o céu
conta com estrelas as mulheres que estão
sangrando abaixo dele

A mulher que — sozinha — passou dois dias
Vinte e duas horas e cinquenta minutos no espaço
levou seu útero para dentro da nave
A mulher tem o poder de suportar
a gravidade de sangrar
viver e permanecer viva

Até a idade diamante, todo mês
a mulher se despede de uma parte de si

Perde uma parte de si
De si e só

Como um corpo vivo guarda
uma morte dentro do ventre?

Se porcentagem servisse para calcular alguma
noção do infinito das verdades que há no mundo
termino defendendo que não há porcentagem
que alcance o sem número de mistério de
um corpo de mulher que aborta

Primata

One Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *