Natalia Barros é poeta, cantora e paisagista. Nasceu em Santos em 1963. Trabalha com a palavra de diversas maneiras; publicou os livros Caligrafias (Edital Proac, 2011) e Nuvens ornamentais (Selo Demônio Negro, 2016), compôs diversas canções para o grupo LUNI e para seu trabalho solo como cantora, fez entrevistas para a rádio (CCSP) com poetas e artistas, além do programa T42 no portal de literatura CRONÓPIOS. É uma das curadoras do projeto: LANDSCAPES | improvisos de poesia e música.
foto: Jaques Faing
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Nuvens ornamentais (Selo Demônio Negro, 2016).
DESDE DENTRO DESDE SEMPRE
pulso
frequência
oscilação
fluxo
propagação
amplitude
vibração
fusão
a caixa torácica abriga,
no espaço compreendido
pela curvatura das costelas,
entre o osso esterno
e a coluna vertebral:
02 pulmões
01 coração
37 ossos
01 onda do mar
NEM TODAS
há mulheres que acreditam
que envelhecer é uma questão de tempo
nem todas acreditam
nem todas tem tempo
nem todas tem uma questão
.
escrever é uma pescaria
se voltar com o peixe,
escrever é isso
se não voltar com nada,
escrever é isso
PÁSSAROS
Poema musicado pela banda LUNI. Letra e voz: Natalia Barros, Guitarra: Theo Werneck, Baixo: Lelena Anhaia, Bateria: Kuki Stolarski, Efeitos: Fernando Figueiredo, Clarineta: Gilles Eduar, Teclado e programações: Ruben Feffer, Imagem: TV CRONÓPIOS, Direção e Realização: PIPOL, Gravado no estúdio: Ultrasom Music Ideas.
O DIA AMANHECEU PARA A CHUVA
O dia amanheceu para a chuva,
mas muita, muita mesmo.
Saí atrasada para o almoço marcado.
Minhas chances de chegar na hora eram mínimas.
Com os faróis quebrados na 9 de Julho,
nem mínimas.
Perdi o encontro que prometia.
Isso, com a chuva, dizia:
azar, volte 3 casas ou fique sem jogar.
Lembrei do que li no jornal, de manhã cedo,
e que não parou de voltar na minha cabeça,
como um provérbio japonês, de tão bonito
por um lado:
“As geleiras derretem na Antártica
e revelam pirâmides”
Sem rumo, entre as geleiras e o trânsito,
senti um aperto, mas segui.
Na esquina de duas grandes avenidas,
quase sem perceber, chorei.
Um casal na rua, ou melhor,
a mulher do casal, me olhava
com interesse e constrangimento.
Pensei em disfarçar com uns óculos escuros,
mas aquele choro público, desautorizado,
rolava com certo orgulho,
lágrimas fartas e gordas brotavam
em profusão, livres.
Ao virar na Paulista, parei o carro 0,50cm,
em cima da faixa de pedestre.
Um erro clássico de cálculo.
Dei um toque na buzina para o carro da frente,
tentando um diálogo, mendiguei por esses
míseros 0,50cm, e nada.
Fui aos poucos ganhando uns milímetros até,
sem querer, encostar,
de leve, o meu para-choque no carro a minha frente.
Prá quê?
Um ser lento, grande e ruidoso, saiu do seu
cativeiro de quatro rodas e começou
a grunhir em minha direção,
numa língua remota, que já devo ter ouvido,
talvez, em algum lugar distante, talvez quem
sabe, num universo paralelo, pois mal
e mal consegui entender.
Entre os ruídos, com muito custo,
identifiquei algo como:
você quer que eu arrebente o seu carro?
Diante de tanta metafísica não tive a menor reação,
nem abri sequer a janela.
Com as pupilas recém lavadas, frescas,
olhei-o diretamente, em silêncio e sem rodeios.
Ele voltou para o seu veículo,
creio que por livre arbítrio, se fechou lá,
aparentemente para sempre.