Mirian de Carvalho é Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), da Associação
Internacional de Críticos de Arte (AICA), do PEN Club e da UBE e membro Associado da
ABI, na categoria de Colaboradora.
Nos dias atuais, dedica-se à poesia, à crônica e à pesquisa no campo da cultura
brasileira. Agraciada com várias láureas literárias, entre elas o Prêmio João do Rio
(poesia) e a Medalha José de Anchieta, que lhe foram concedidos pela Academia
Carioca de Letras em 2016. Nesse mesmo ano recebeu o Prêmio Sérgio Milliet, da
Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), pela publicação de livro A brasilidade
na pintura de César Romero (pesquisa).
Os poemas a seguir foram selecionados do livro O Camaleão no Jardim (Quaisquer, 2005).
POR ONDE SAÍ
Pelos cantos da cozinha, o cano
furado enrugava crostas sobre
a pele de ferro quase rasgada
à repetição dos dias.
Ao fim do trajeto, a torneira pingando
enchia o balde – aguçando-lhe o gosto
do vazio (que não rumoreja). Quando
findava a tarde. E sempre.
Mórbidos, os lugares daquela casa.
Ao relembrá-los visito-me na soleira,
pisando o reverso da entrada.
Ante a terra do jardim pintado ao fundo
da varanda, descansei meus pés.
Por onde saí, não me lembro.
FRUTOS
Ansiando pouso nos ramos da pele
silvestre, imaginários peixes roçam
o verde das primeiras rendas
acolhendo os frutos.
À desejada polpa, minha fome contenta
a boca úmida, imitando as raízes
sorvendo a seiva. E a vida
aquecendo-se na casca.
Intumescida aos lábios, recobre-se
de calor a pele das maçãs.
Arredondando-se mais.
Abrindo-se aos tons da terra,
os botões do meu vestido iniciam
no jardim a devassa das águas.
RETARDANDO A NOITE
Naquele fictício chão, revezavam-se
os seres do instante. Retardando a noite,
caminhavam comigo meus romeiros
da vidraça.
Desviantes de terríveis rotas, a esse
jardim dos ares desceram bestas de pedra
e ventos de lavas sufocando a terra.
E dando peso às nuvens.
Passo lento, o camaleão venceu
demônios. E amansou as goelas
do inferno.
Nas venezianas, sua pele recriou
a luz. Cor de nácar. O camaleão
do telhado.
O CAMALEÃO NO JARDIM
Para sobreviver, o camaleão
vai além das suas forças. Ressuscita
os canteiros. Espanta os fantasmas.
Esconde-se da morte.
Para sobreviver, todo seu dorso
transforma-se ao olhar invasor.
Verbo da prudência, com as quatro
patas não pisa ele no chão.
Para sobreviver, a terra vai além
de si. Além das dobras do tempo,
recebendo húmus e tempestades.
Corpo da noite em meu corpo
do dia, tonalizando-me a pele
surgem no jardim as mutações.