Marianna Perna: A Cerimônia de Todas as Vozes (2018)

Marianna é, de formação, historiadora e pesquisadora musical, mas também pesquisadora livre do corpo e da voz, com um especial apreço pela poesia, este lugar onde considera habitar toda a dimensão mágica e suas sempre infinitas e renováveis trilhas de volta à voz da alma. Deseja que os poemas possam trazer de volta nosso ser poético oculto e vibrante – re-encantá-lo pelo chamamento dos versos. A Cerimônia de Todas as Vozes (Urutau, 2018) é seu primeiro trabalho solo autoral, uma proposta de transpor as fronteiras de gêneros artísticos.

 

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro A Cerimônia de Todas as Vozes (Urutau, 2018).

 

 

A FEITICEIRA

 

Numa outra hora, vida
distante
que perdura
pela areia
reluz, me seduz.

Ainda vejo os olhos do tempo
vermelhos, congelados.

Sal e mais sal.

Em natureza profunda
lá onde não há chão,
mas se pisa em raízes
se reencontra a carne
de pura seda, eterna
vasta
em território escuro
e sem armadilhas.

Nas trevas, o amor brilha.

 

 

 

EMERGÊNCIAS

 

i. Agora se recria

Eu choro o teu nome
pingo os teus dedos.

A gravata de sangue
que não pode me pertencer.
As unhas de seda
que tudo podem tecer
hoje já formam rios
alfabetos.

Criam
levam adiante
de volta
e o que a mim não pertence
me perpassa, vai embora.
Deixa seu novo nome
pela areia…

Perplexa

Apenas observo, de dentro do automóvel.

ii. Ela está no meio de nós

Há uma voz que vem das montanhas
Há uma força que nos acompanha
E grita o seu silêncio
Por cima de todo este caos.

Uma poesia que reina sobre a sujeira

Infinita, absoluta.

Eu padecerei
Você, também
Mas ela continuará a soar
através dos tempos
Invencível, correndo com os ventos
mesmo quando tudo terminar.

Será levada de mão em mão

Até chegar ao topo
Do mais alto morro,
onde tudo começou.

 

 

A RAINHA ESTÁ MORTA

 

Sem luz nos olhos, jaz a vida
rasgando os veios do futuro
que se fez agonia pura, abortada.

Quantos homens não nos pisotearam
terra compactada, sem oxigênio

séculos
e mais séculos
de bruços.

Arrancadas as raízes.
Apenas o mal era em nós reconhecido.
E suprimido.

A história é suja por demais

Sangrenta.

Areia, sangue, açúcar e vapor.
Porque terra já nem bem há mais.
Apenas o peso da
Memória.

Dos confins esta memória chega
se faz viva e seca

Assombra-nos.

Pois a história continua a mesma.

Os mesmos ímpetos, os mesmos rostos
os mesmos ferimentos
campos vermelhos,
apenas o disfarce é maior.

E se fez menor uso da voz humana.

Em vão se acendem muitas velas,
para “afastar o mal”.
A corrente permanece, ao lado do punhal.
Criado mudo de ferro e chicotes.

E uma legião de deformados invisíveis paira.

Pois, afinal, não foram todos paridos
por uma mulher?

 

 

DELES NASCEM FLORES

 

Queimaram-me.
Mas estou aqui.
Não se preocupe,
Meus ossos estão intactos.

Os dentes… Quatro.
Deles nascem flores.

Eles nunca irão encontrar
as Raízes…
Não se preocupe.
Só nós é que sabemos.

 

 

NATUM ANTE OMNIA SAECULA
(“Nascido antes de todos os séculos”)

 

Traga ele de volta
Traga ele de volta
de volta pra mim.

Juntar os cacos do espelho.
Os retalhos da memória.

Rodopio. Te encontro. Me faço raio,
relâmpago e trovão. Sorrio.
Olhar vai além.
Cravo em nosso âmago as marcas
do amor profundo que escolhemos
a cada nascimento.

Para o gigante me escapam agora
as palavras. Emudeço. Enfeitiçada
sem remédio, apenas murmuro
que te escolho
de novo e de novo a cada respiração
destas narinas que nem a mim pertencem.
São tuas. Não tem fim,

Estas lanças são parte de mim.
Estas lanças são parte de mim.
Parte de mim…

E volta agora,
no espelho
sem fundo.

 Natum ante omnia saecula.

Agora ele me toma a razão,
me empalidece.
Simplesmente morro.

Abro os olhos, enfim,

e é só o vento
que toca o meu rosto.

 

Primata

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