Julia Raiz é escritora de ficção e ensaio, mantém o podcast Raiz Lendo Coisas e trabalha com tradução. Publicações: “diário: a mulher e o cavalo” (Contravento editorial, 2017), “p/vc” (plaquete, ed. 7Letras, 2019), “cidade menor” (plaquete, ed. Primata, 2021). No prelo: “Metamorfoses do Sr. Ovídio” (ed. Arte & Letra) e “Bebê tem fascinação por lâmpadas” (ed. Chão da Feira), @julia.raiz no Instagram.
Os poemas a seguir complementam a plaquete “cidade menor” (Primata, 2021), disponível neste link.
CIDADE DE BORRACHA
as luvas não pensam só sentem
disseram as luvas de Perón
numa sessão de tortura
a gente só queria se divertir
as diabas levaram muito a sério:
latin america literature has always had a relation
with politics and social reality
the failures of colonization
failures
falhas ?
como se traduz vingança
como se traduz um soco no meio da fuça
CIDADE JOAQUIN PHOENIX
estou acompanhada por um homem talvez seja meu primo
nós dois somos homens do tempo de Jesus Cristo
meu primo pede que eu o chame de *inaudível*
que em hebraico quer dizer messias
a gente chama a atenção de um grupo que está por perto
eles obrigam meu primo a lutar deve mostrar seus superpoderes
de Jesus Cristo
volto a ser eu mesma o mesmo bando me expulsa de casa
jogando no chão todas as minhas coisas imploro por roupas
estou pelada mas desconfio que apesar de ser eu mesma
ainda sou um homem
porque não sinto tanta vergonha do meu corpo
eu e meu primo fugimos até o bar no final da rua
tento ligar pra minha mãe e não consigo
não penso na possibilidade de ligar pra minha tia
porque ela está morta finalmente
consigo falar com meu irmão mais novo
e peço o número da Carol
hoje vamos tentar dormir na Vila Guilherme
da onde se sente o cheiro de achocolatado do Rio Tietê
CIDADE TIERRA WHACK
VAMO MANTER ISSO TO FALANDO SÉRIO NÃO DELETA
CIDADE PERPENDICULAR
a Dilma Roussef não tinha paciência, falam
imagino ela diretora de cinema no lugar da Agnès Varda
e a Agnès presidenta do Brasil.
talvez eu não visse tantas coincidências
com a minha vida amorosa nos filmes da Dilma,
em As cento e uma noites
Silvestre é o nome do jardineiro e um cisne mora no lago.
o filme da Dilma acho que seria numa pequena ilha
com um único coco e a Dilma ia filmar o coco
de todos os ângulos, pedir pro coqueiro balançar suas folhas
pedir pro coco cair
o coco ia colaborar com ela,
conhecendo seu histórico de luta,
ia cair na areia fofa e seca com um baque discreto
a câmera da Dilma seria bidimensional
como um pedaço de cartolina
e eu estaria naquela sessão extra pra aplaudi-la
mesmo que tivesse cochilado em alguns momentos.
o governo da Agnès no Brasil que coisa
a Agnès grifando os projetos de emenda com canetinha bicolor,
pintando o cabelo para combinar com os terninhos.
Agnès também ia perder a paciência
e obrigar os homens do gabinete a assistir
um vídeo mudo com duração de 11’
mostrando uma mesa de 5 metros
coberta de muita comida gostosa
um pouco antes do horário de almoço.
mas apesar de tudo
o que me deixa mesmo triste esses dias
é saber que Agnès e Dilma seguiram suas vidas em paralelo
sem dividir a certeza de que o aleatório
nos poupa muito trabalho
inventário das proximidades entre a cineasta
Agnès Varda (30/05/1928)
e a ex-presidenta Dilma Vana Rousseff (14/12/1947):