Hilda Hilst: anos 1970

Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP) em 1930 e faleceu em Campinas (SP) em 2004. Uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX, publicou vasta e versátil obra nos gêneros da poesia, da ficção, da crônica e da dramaturgia.

 

 

Realizaremos um breve panorama de sua trajetória poética, dividido em 5 postagens. Confira a primeira (anos 1950) neste endereço e a segunda (anos 1960) aqui. Desta vez, selecionamos poemas a partir de seu livro publicado na década de 1970: Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974)

 

 

Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974)

 

 

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO

 

I.
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

 

 

XVII

Morte, minha irmã:
Que se faça mais tarde a tua visita.
Agora nunca. Porque o amor de Túlio
O vermelho da vida, pela primeira vez
Se anuncia fecundo. Diante da luz do sol
O meu rosto noturno de poeta te suplica
Que te detenhas ali, entre a roseira
E o junco
Ou talvez, para o teu conforto, assim, te estendas
À sombra das paineiras, sonolenta.
Morte, contempla. Poupa, quem por amor,
Em tantos versos, também se fez rainha.
Esquece o poeta. Porque o amor de Túlio
O vermelho da vida, pela primeira vez
Secreto, se avizinha.

 

ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO

 

I.
É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

 

V.
Aos amantes é lícita a voz desvanecida.
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo
Ronda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor
Quando tudo anoitece? Antes lamenta
Essa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.

 

ÁRIAS PEQUENAS, PARA BANDOLIM

 

IX.

Incontáve, muda
Essa plenitude.
Incontável, mudo
Meu instante de morte.
Ando morrendo.
E, sem poder, traduzo:

É punhal cintilante
Esta minha morte.
Como se fosse dor
Sem se fazer ferida,
Como se o grito
Se fizesse mudo.
(Sem ser agudo
Um silvo penetrasse
No teu profundo ouvido)

Como se eu lamentasse
Sem lamento
Sem urro.
Corpo de fogo morrendo
Sem a luz do ouro.
Isento. puro.

Vivo do seu próprio momento.

 

XVI.

Negra
Como a terra profunda
Que retém a seiva.

Rubra
Explodindo em sangue
Tua palavra omissa
No meu peito amante.

Túlio, lâmina aguçada
Retalhando a luz
Da minha palavra.

Turvo
Teu amor austero
Recobrindo tudo.

Túlio
Castigando eterno
A perdição e a carne

Do poeta.

 

POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO

 

VIII.
Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua

Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

macaio

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