Gustavo Berbel é formado em Ciências Sociais (FFLCH-USP), mestrando em Antropologia Social (PPGAS-USP) e pesquisador do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA-USP). Fundou, junto com outros escritores, o coletivo Poesia Primata e lançou de forma independente o livreto Do canavial elétrico à metrópole (2015).
PALAVRAS LAVADAS DE ROXO
margeando o tietê sertanistas sangraram o solo
pintaram a cor forte – esse roxo avermelhado de suas vísceras
amigavelmente assassinando os kaingang
sepultando-os embaixo dos pés de cana-de-açúcar
(pois cada cristão tem sua cruz)
inútil falar
sobre terra de bandeira
solo de covardes desertores de guerra
que preferiram matar índios
(cordialmente)
como posso soltar grunhidos?
se na verde bifurcação pontiaguda
fundi-me com a terra roxa e acabei amordaçado
sendo mais uma artéria aberta no campo incomunicável
não há o que explicar sobre essas casas tortas de madeira
sobre o moinho enferrujado da vida rural
são chapas e fábricas de homens
cortes a laser
dobras metálicas
peças
minha certidão de nascimento:
um sítio no limiar de Vanglória
feito terra sou explorado
plantado pisado calado
sem poder falar
MARCAS
lavo meus pés
vermelhos
encardidos de terra
no piso alvo
os fios conduzem o escuro
artesanato: tecer de água
fluindo no caminho certo
a escorrer
e a correr
do meu corpo
ainda molhado
descoberto da poeira
não há mais tormento
só o silêncio
que me acompanha
quando me movimento
e desnudo
vejo meu mundo
as minhas marcas
sujas de mim
SOL
a cidade chove ácido lisérgico
leves gotas vestidas de ganância
respingam cores e sabores de fuligem
ácida multiplicidade
tantas formas destoantes
eram antes fortes marcas
retas ilhas de concreto
em abstrato espaço
nadariam em árido sentir
e dançariam imaculadas as sangrentas ruas
desprendidas dos pudores corrosivos na cidade nua
suas livres vias de acesso
partes baixas rente ao centro
vestem de vermelho seu asfalto
só assim violentaria o concreto
com balé de passos soltos
—- caminho neon riscado —-
em mais um corpo absorto na cidade
sendo um corpo sol
solitário
RE-FEIÇÃO
estou com fome de você
da textura – carne
do sonho apanhado que pairava sobre
nós
de digerir o vórtice de impulsos
que esfrega minha existência
friccionando o composto do meu corpo
carregar de magnetismo o esqueleto
já desprovido de vivacidade
que se debate convulsionado
agora
apanho lâmpadas nas árvores
risco com unhas metálicas
retos prédios
travo os molares nos músculos da cidade
convicto de refazer seus traços
e os pedaços de fruta e seiva
que ex-corriam do seu hábil pomar
reconstruo sua fisionomia
(mosaico de re-feições cósmicas)
tão crua na sua essência
NO CAMBUCI: ME PERDI
São Paulo engoliu os homens
amarrou em seus fios elétricos
os mórbidos corpos e
asfaltou a mobilidade
no Cambuci
me perdi no devir
e chorei gotas ácidas
(não há bandeira ou Bandeirante)
sinto-me pequeno
fora de escala
entre vales e dinheiro
escalo dejetos
completo-me
mesmo concretado
à sua estrutura