A artista visual tem um percurso que alinha diferentes materiais, procedimentos e linguagens — de instalações a desenhos, de fotografias a gravuras. Pesquisadora e educadora, é autora de vários livros teóricos e ensaísticos de referência para Arte e Educação. Seu primeiro livro de poesia, A pesar, a pedra, foi lançado em 2018 e da língua e dos dentes é o seu segundo livro de poemas, lançado no final de 2020 pela Editora Urutau. Atualmente Edith coordena a pós-graduação Caminhada como Método para Arte e Educação na A Casa Tombada.
Os poemas a seguir foram selecionados da obra da língua e dos dentes (Urutau, 2020), com orelha de Agnaldo Farias, apresentação de Natalia Barros e posfácio Marcílio Godoi.
SILÊNCIO
algumas outras palavras
vem do choque
sentenciam uma onda sem água
esfarelada no ar
onda bate em algo de nada em nada
tão fácil não tão fácil
um silêncio
nuvem carrega saturno
chuva chove
olho cimentado de suor
nuvem carregada de chuva
nem vento dissipa silêncio assim
um silêncio
pedra opaca sem lugar definido
pedra comove uma espécie de dentro
pedra muda nem sai do ponto
elegância discreta aparece
parece vulto
vem por trás e corrói e afirma
quando assim é assim
um silêncio
tempestade de ar e areia e água
de grão em grão, mil grãos chapiscam
na pele na sombra na sobra
dia horário lugar
estreiteza que alarga
líquido que não se contém
esparrama pelas bordas e margens em desvios
um silêncio
sol na sombra e a falésia cai
fim de dia meio de tarde
sol na altura da falésia
a penumbra assombra
traça na terra a graça de uma sombra
caixa preta a céu aberto
luz veloz no limite da lâmina solar
inventa falésia parada cortada em viés
contorno sombrio lúcido cravado nos grãos de areia
deserto-praia vira mar virá e verá
abafa som e timbra olho
sobra linha de horizonte em acordes
um silêncio
silêncio é acordo
o silêncio me acorda
DA LÍNGUA E DOS DENTES
língua não se quebra
liga a saliva debaixo dela
mole a língua controla
o batente do som no osso do dente
a água lambe a pedra branca
dente mineral, dente rochoso
na caverna úmida, língua nada borbulha
na boca rosada, língua examina minúcias
quando parada, língua insone
mede a cavidade do dente, abismos íntimos
músculo involuntário informe
língua, réptil alongado enrola
na ponta da língua, textura
no meio da língua, tapete do tato
na base da língua, os gostos
adesão do som ao texto
pregnância das entranhas ao sentido pleno
una a língua na carne, a mão da boca
modele o gosto dos cinco tentáculos
ácido doce salgado amargo azedo
os sentidos dos temperos tonificam a dicção
a língua é temperamental
das vívidas substâncias mortas na língua viva
os sabores as pitadas os humores
o corpo degusta dissolve suga engole
língua-lâmina e seus rumores
língua daquele que balbucia e murmura
língua daquele que afaga e tranca
língua daquele que draga e tortura
língua daquele que paga e arranca
língua daquele que gagueja e fissura
língua daquela que braveja e imanta
língua daquele que silencia e cura
língua daquele que fala e encanta
língua ávida, porta de entrada
amolece os restos de uma gênese
dentes em arco laçam maxilares fixos
dentes toscos pontiagudos, os dentes duros
dentes, as pontas de colares-pérolas
amarelados, branco aleijado
dentes calçam o céu da boca anelada
arcada dentária, tecla afinada
toca corta espalha ameaça avança
espalha em montes em cumes, suas lanças
a mandíbula é mais que espada
a vida depende de uma boa mandíbula
vida dura de roer sem trégua nem mágoa
uma vida bem mastigada
os dentes, extremidades dos ossos
bordas expostas, esqueleto escondido na fundição de um corpo
da carne suspensa pela armadura oca
o osso quando sai de dentro, ilumina
luz que dele sobra em excesso
vaza pelo reflexo branco das armas aparelhadas
em nossa bica, dentes cortantes: anseio de branco
dentes domesticados, falsamente torneados
dentes, ossos desencapados
encarnados sem carne, no osso
oferecem mordidas, pegadas decantadas
cantos aspirados, embocadura cadenciada
dor de dente aguda, agulha em nós
modulação dissonante de um entre tantos
restos de comida, incrustrados nas paredes internas
de nossa catedral originariamente alva, salva e nua
para que se toque e se vibre esse piano
a estampa de um sorriso em sol maior
e o medo de animais porque mordem
e os dentes, nossas espadas, mordem
os ossos envoltos pelo manto de carne
de sangue de músculo de pele invólucro
da embalagem sem vinco, nascentes mordem
expele ar quente e fala, falo
oriundos de estranhas entranhas, ruídos construídos
resíduos amolecidos, sons pulmonares esculpidos
grávidos contornos, a palavra cala
da língua oculta nos dentes cerrados, o ar aglutina
dente que dói, rói os ossos ao avesso
língua que racha, seca o corpo aceso
e o que seria deste corpo de vísceras e órgãos
se a abertura não fosse uma boca feita de língua e dentes
boca vazia de voz infla na primeira aspiração
vir à luz seria isto – interrogação
a boca que morde, torce
a boca que tritura, fratura
a boca que traça, arquiteta
a boca que fala, desenha
tons crescentes aglomeram pedaços de fôlego
articulam-se em gotas, erguem-se no ar em ondas
fonemas em elos, cadeia sonora
em montanha, serra escritura
do jogo da língua contra os dentes, o balanço da embocadura
do duro do mole do fixo do móvel, emerge um firmamento
luz de sentido na língua que pressiona o dente
de onde sai som, a onda líquida recua
rebate ósseo que recusa, da emissão gasosa que avança
tensão do tendão que alonga, do ritmo sanguíneo modela
timbre do músculo que modula, um outro tom
som outro tom outro som
ar em vogais, a água de um mar
ar em consoantes, a pedra de um mar
vogal mítica em harmonia imaterial
vogal contínua em melodia informal
irreverente aos dentes e à língua
a vogal da boca se desprende, medidas plurais
leve ar, a corda vocal vibra
acorda passos desmesurados
são lembretes de deuses compondo os infindos
sem rasura nem lacuna
som que afunda que alarga que amansa
retoca a consoante sólida do osso duro
pés que tropeçam a terra do chão, arranca
mãos que batucam a pedra, sem tranca
eco cravado no crânio em toque de batuque
consoante que no instante interrompe, rítmica
intervalo da sentença cardíaca em ressonância, tônica
acelera arrebata limita estanca
e o som manca, espanca
ar pregnante, nascido da harmonia distante
de sóis que já não se veem mais
inspira vazios gasosos, sobra som
expira som sobre ondulação
ar tão longe
sidéreo que atravessa a carne
gruda na carne, se agarra nos poros
gravado no som em forma, soma
do silêncio a cavidade modal, emana
brota a palavra que mama
da língua vernácula castiça, extingue
da boca mestiça de híbridas carnes, exala
do dente de ritmo inato inacabado, não se cala
amuleto de todos os sons, de todas as formas dos sons
de todas os ares esculpidos nos sons
a voz do som, escultura provisória
palavra bengala não banguela de todas as línguas