Claudio Willer é autor dos livros de poesia Anotações para um apocalipse (Massao Ohno Editor, 1964), Dias circulares (Massao Ohno Editor, 1976), Jardins da Provocação (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981), Estranhas Experiências (Lamparina, 2004) e A verdadeira história do século 20 (Córrego, 2016), também publicado em Portugal pela Apenas Livros – Cadernos Surrealistas Sempre, em 2015. Além de ensaísta, crítico e agitador cultural, realizou importantes traduções de obras como Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, Escritos de Antonin Artaud e Uivo, Kaddish e outros poemas de Allen Ginsberg. Um pouco mais de seu vasto trabalho e colaboração cultural pode ser conferido neste blog.
foto: Renata d’Elia
Realizaremos um breve panorama de sua trajetória poética, dividido em 4 postagens. Nesta segunda publicação, selecionamos alguns poemas de Jardins da Provocação (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981). Confira a publicação sobre seus dois primeiros livros de poesia neste link.
À TARDE
olhar com o olhar espantado
o vôo do primeiro pássaro noturno
e saber que em breve
haverá algum tipo de confronto
de alucinação coletiva, uivo geral
saber
que por trás do olho
guardamos uma planície de risadas
dobrada em algum desvão da alma
– a sensação lisérgica de estar aí
e perceber
a fumaça dos últimos acampamentos
a casa na encosta do morro
o albatroz que arrepia sua trajetória
os mosquitos que zumbem e que zumbem e que zumbem
nesta tarde
em que três petroleiros se encaram
e trocam sinais ao largo
e uma memória nos persegue
de rios, cataratas e pororocas
nesta praia
que é fim e começo
de qualquer coisa já sabida e possuída
e oculta
no oco da última fibra nervosa
AUTOBIOGRAFIA SELVAGEM
1961: Do grande olho saiam todas as coisas. Caminhava-se em meio ao maremoto, sondava-se o tempo, a indiferença dos dragões alados não comovia ninguém.
1962: Pelos cantos das casas, pelos cantos, encolhíamo-nos e rolávamos, saltimbancos de uma nova ordem das coisas. Algum tipo inédito de som era despejado sobre a cidade. Aumentava a umidade do ambiente, nem sempre fazia frio. Devo contar tudo. Garrafas voaram pela janela.
1963: O terremoto, a convulsão, o susto pálido. E o entardecer que se abria como uma grande vagina para engolir-me. A mais pura esquizofrenia. Pastéis alados começavam a cobrir a paisagem, e pousavam nos beirais e parapeitos. Transcrevia-se a loucura. Como descrever tudo que aconteceu?
1964: A grande risada. Contemplei o mundo, presenciei os fatos de perto, a partir da minha cama. Impossíveis outras posturas. Alucinações no Maranhão e Recife. Que odor de ferrugem permeava as madrugadas! Mas algo se preparava.
1965: Chovia demais, era muita lama cobrindo tudo. Lembro-me de um olhar, uns olhos, talvez por detrás residisse alguém. Não sei; seria incapaz de contar tudo. Somente o plano inclinado, e era oleoso. Um dia trepamos numa árvore, era bonito, e fazia sol.
1966: O eco dos tambores. As anunciações. As auréolas. As corolas. Os revérberos. Também dessa vez, todo mundo estava lá. Um começo misterioso de qualquer coisa. Novamente o olhar habitado, estendendo-se e tomando conta dos subúrbios.
1967: Não sei quando começou. Durante um tempo, carregou-se um canivete espanhol.
1968: Uma certa acidez e ferrugem no ar. A poeira também fazia-se sentir. O calor era aquele calor que precede as batalhas. Mas tudo bem, juntamos os pedaços galhardamente.
1969: Como era extensa aquela praia. Tinha vindo ao mundo para brincar, mas havia me esquecido. Claridade, talvez. Entenda quem quiser. 1969 foi um ano rodeado de gotículas como um halo lunar.
1970: Aquele tambor, e o vértice fincado! Dizíamos sempre a mesma coisa, um aguilhão de ouro atravessando os dias e juntando-os na mesma fieira.
1971: Resto de selvageria. Certas coisas não devem ser ditas, apenas esculpidas em jacarandá.
1972: Redondo ou ovalado. No fundo da caverna, fogueiras acesas.
1973: Não consigo lembrar-me.
1974,1975,197………………………………………………………………….
E agora, e agora estamos aqui, fixos e trespassados no tempo. E agora estamos um frente ao outro, olho contra olho, sexo contra sexo, abrindo sucessivas cortinas do oculto olhar. E agora sabemos o que se passa e o que vai acontecer. Somos definitivos como uma profissão de fé. Somos uma confissão arrancada à meia noite. Prenuncia-se um diálogo poético. Os amigos começam a chegar, cheiro de malas e corrimões no ar. O grande olho despeja novos caminhantes, eles procuram seus aposentos e se instalam.
PELOS 40 ANOS DA MORTE DE GARCÍA LORCA
(1936 / 1976)
Eu vi pouca coisa nos jornais & revistas sobre os 40 anos da morte de García Lorca
algumas manifestações e homenagens & uma notícia interessante (na Veja)
detalhando as circunstâncias – só isso
o resto, notas esparsas perdidas nos textos
quase ninguém lembrou
passou despercebido
ninguém disse nada
ninguém quis lembrar
porque as pessoas não querem mais lembrar
e desistiram de falar
pois esta é a era do silêncio
silêncio de covas rasas e túmulos lacrados e circunscritos
silêncio vigiado e preso
silêncio de poeiras há pouco assentadas
pois todos estão mudos e perplexos
alguns mortos incomodam demais
e ninguém quer saber
ninguém quer ver
ninguém quer saber o que tem a ver
apenas este silêncio selado esponjoso grávido
de escorpiões & maresias & tempos & memórias
& vítimas do fascismo
silêncio sem preces nem retaliações
silêncio de palavras costuradas
sexos guilhotinados
uivos espalhados pelas madrugadas
silêncio fantasiado de escafandrista
silêncio de pupilas desorbitadas
tímpanos perfurados unhas arrancadas
gritos em corredores estreitos
jorros de silêncio naufrágios de silêncio
silêncio de cascos estilhaçados de tartaruga
desabando sobre o mundo
silêncio sobre o que foi
o que é
e o que se sabe
silêncio com endereço certo e data marcada
silêncio vômito do tempo e ejaculação precoce
silêncio de feltro
estiletes & punhais dentro da noite
& anteparos & mesas cirúrgicas
& corpos & anêmonas & brônquios
& sangue recém-coagulado pelas paredes
silêncio maior que o mundo e mais pesado que o tempo
silêncio de eletrodos & poções mágicas
silêncio de sorrisos oblíquos
rostos cúmplices
olhares de viés
silêncio conivente e sussurrado
silêncio fantasma à cabeceira
passos de silêncio
atmosferas de silêncio
perseguições na quietude do tempo presente
convulsões inesperadas
silêncio carregado de alucinações
que nos perseguem encapuzadas
silêncio de vértebras e rins e palavras ocultas e soterradas
e vigiadas
junto ao corpo de Federico García Lorca
assassinado por alcaguetes e tropas fascistas
em um campo de Granada em agosto de 1936
desde então ciosamente guardado
por uns poucos fantasmas carcomidos e fosforescentes
para que ninguém chegue perto
e tenha a coragem de romper o lacre
e soltar as palavras
a serem lançadas contra a opacidade do mundo
… … … … … … … … … ….. … … … … … … … … ….. … … … … … … … … ….. … … … … … … … … ….. … … ..
e acharam tudo muito bonito
gostaram demais dos textos
de fato, era um grande poeta
e ficou por isso mesmo
FAZ TEMPO QUE EU QUERIA DIZER ISTO
ainda não conseguiram destruir o mar
não foram capazes de estrangulá-lo com fios elétricos e rodovias
nem de o retalhar com cercas
ou de lotear as manchas do seu dorso
o mar ainda existe
presente na consciência dos amantes
nas madrugadas de suor cúmplice estampado nos lençóis
para podermos ver o mar
para penetrar aos poucos nestes refúgios mornos
cavernas do primitivo sonho
útero de filamentos luminosos
é preciso nos desnudarmos totalmente
e sabermos nos reconhecer
pelo toque da pele
como algo que termina e recomeça
dois poemas entrelaçados
mordendo-se como a serpente mítica
o mar e suas gavetas de cristal
seus andaimes de prata
sua borbulhante conspiração de gelatinas
sua sofreguidão de novelas agitadas
seus túneis de trilhos descendentes
sua nudez flamejante
seu tempo de redes desfazendo-se na areia
seus barcos mergulhados na definitiva espera
seus poços artesianos de sal
seu recheio de quadros abstratos
sua cornucópia dos desejos obscuros
seus punhais envoltos em sargaços
suas torres de castelos de beleza pura
suas largas avenidas batidas pelo vento
seu arco-íris dançando o balé do amanhecer
suas mãos de dedos transparentes a perder de vista
guardião dos nomes dos suicidas
que vagam pelas ruas de cidades submersas
labirinto de lembranças
labirinto de luzes e sombras vivas
ondas fazendo valer seu interminável instante de rugidos
entrechocando-se com o furor dos metais nas batalhas de Paolo Ucello
selva de ruídos selva de ausências
e a hora da praia
pura realidade de silhuetas
lábio de vagina úmida dos continentes
dorso de gato angorá roçando a terra firme
clamor de corais
ecoando por campos submarinos
afugentando as águas-vivas
que chegam à praia como bandeiras de nações febris
(nesta rua asfaltada e cheia de gente de uma cidade de prédios inúteis que contemplam o mar certos da sua fatal corrosão
encontro um velho e inesperado amigo, ele carrega consigo sua roupagem hindu de seda negra e um estranho olhar fixo de visionário estampado no rosto pálido
recuamos para um lugar tranqüilo, sentamos para conversar entre palmeiras e uma brisa fresca
falamos das pessoas e das aventuras dos anos 60 e 70, tudo o que aconteceu, esses frágeis cenários agora vistos a partir desta perspectiva favorável de uma mesa de bar, eterna como todas as mesas de bar, neste mesmo lugar onde já escrevi outros poemas
próximos demais da areia para que não sejamos rigorosamente verdadeiros
nomeamos os personagens: um que foi morar em Punta del Este para fazer não se sabe o quê, outro que viajou para a França e ficou muito rico, aquele que mora em um barco e contempla o vazio todas as manhãs, alguém que dardeja traços alucinados sobre o papel, os que escrevem coisas absurdas com a firme convicção dos testamenteiros
e há também os que se mataram, os que foram mortos, que se afugentaram de si mesmos e ingressaram na definitiva condição de fantasmas, os navegantes para todo o sempre
o amigo se despede e parte, mergulha para dentro do calor de fim de tarde de um verão precoce, atravessa a barreira de uma cerca viva de folhagens, dissolve-se dentro da névoa que sempre se forma nestes dias
arrasta consigo este feixe de biografias entrelaçadas
e a questão parada no ar do que fazer com tudo isso
levanto-me e vou até a mureta que separa o jardim, agora deserto, da praia
chego mais perto
o entardecer começa a despejar seu instante de alucinação carmesim)
CHEGO MAIS PERTO
atravesso um filtro de maresias
recolho das ondas a simetria deste poema
nuvens dilaceram-se em um derradeiro combate de cores
enquanto o mar
(um rio mais indomável)
respira pesadamente
passando à minha frente
com a lentidão solene das procissões de barqueiros religiosos
estendendo seu cobertor de noites
abafando as fogueiras do fundo
acesas nas clareiras onde afogados tentam aquecer as mãos
a presença humana é murmúrio e solidão
restam apenas estes dois navios cargueiros
sombras recortadas contra o longe
dois barcos – dois pontos
vozes solitárias insignificantes e nulas
mergulhando no vazio cinzento
e este veleiro
mancha agitada sobre um mapa de negações
deslizando rápido para dentro da sua hora noturna
o humano recua de vez
agora tudo é distância e vazio
dissolvem-se as palavras e a paisagem
resta apenas o outro
tudo o que não somos
tudo o que nos é estranho
como um texto
oco da memória viva
malha obscura de encontros amorosos
o negativo deste nosso mundo de coordenadas terrestres
com seu surdo murmúrio de infinitas fontes