Gustavo Berbel

Gustavo Berbel é formado em Ciências Sociais (FFLCH-USP), mestrando em Antropologia Social (PPGAS-USP) e pesquisador do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA-USP). Fundou, junto com outros escritores, o coletivo Poesia Primata e lançou de forma independente o livreto Do canavial elétrico à metrópole (2015).

 

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PALAVRAS LAVADAS DE ROXO

margeando o tietê sertanistas sangraram o solo
pintaram a cor forte – esse roxo avermelhado de suas vísceras
amigavelmente assassinando os kaingang
sepultando-os embaixo dos pés de cana-de-açúcar
(pois cada cristão tem sua cruz)

inútil falar
sobre terra de bandeira
solo de covardes desertores de guerra
que preferiram matar índios
(cordialmente)

como posso soltar grunhidos?

se na verde bifurcação pontiaguda
fundi-me com a terra roxa e acabei amordaçado
sendo mais uma artéria aberta no campo incomunicável

não há o que explicar sobre essas casas tortas de madeira
sobre o moinho enferrujado da vida rural

são chapas e fábricas de homens

cortes a laser

dobras metálicas

peças

minha certidão de nascimento:
um sítio no limiar de Vanglória
feito terra sou explorado

plantado pisado calado
sem poder falar

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Eucanaã Ferraz: trajetória poética

Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro em 1961. É professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor dos livros de poesia Livro Primeiro (1990), Martelo (1997), Desassombro (2002), Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008), Sentimental (2012) e Escuta (2015). Escreve também para o público infanto-juvenil e organizou vários livros, entre eles, Letra só (2003) e O mundo não é chato (2005), ambos de Caetano Veloso; reuniu poemas e letras de canção na antologia Veneno antimonotonia (2005) e, após preparar a Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (2004), passou a coordenar a edição das obras do poeta pela Companhia das Letras.

Selecionamos poemas de todos os livros de poesia publicado pelo autor até 2015, disponíveis na página http://eucanaaferraz.com.br.

 

foto: Walter Craveiro.

foto: Walter Craveiro.

 

CALENDÁRIO

 

Maio, de hábito, demora-se à porta,
como o vizinho, o carteiro, o cachorro.
Das três imagens, porém, nenhuma diz

do que houve, para meu susto, àquele ano.
O quinto mês pulou o muro alto do dia
como só fazem os rapazes, mas logo

pelos quartos e sala convertia o ar em águas
definitivamente femininas. Eu
tentava decifrar. Mas

deitou-se comigo e, então, já não era isso
nem seu avesso: a camisa azul despia
azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

de si mesmas, eu diria, e não sei ter
em conta senão que eram o que eram. Partiu
do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

Maio, maravilha sem entendimento,
demora-se à porta, como o vizinho,
o carteiro, o cachorro. Porém,

nenhuma das três imagens, tampouco
este poema, diz do que houve, para meu susto,
àquele ano.

 

(do livro: Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.)

 

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Macaio Poetônio: Os bares do Estado (2016)

Macaio Poetônio nasceu em 1990 na Paulicéia, sob o signo do centauro e filho de Murilo e Roberto. É um dos fundadores do portal de literatura Poesia Primata e da Editora Primata, nos quais exerce as funções de editor e de diagramador. Por meio da última, publicou as plaquetes noturno (2014) e seu cadáver estava repleto de mundo (2015).

 

 

Os poemas selecionados são de seu livro de estreia Os bares do Estado (Editora Primata, 2016).


SANTÍSSIMA ANDRADE

 

Às vezes te encontro pelas ruas de São Paulo
mas se de longe é de perto não é.
Fantasiado de vizinho sempre me assusta
enquanto espia pela janela.
Vestido de professor entra na sala palestrando
sobre seus tormentos econômicos.

Como mendigo, vem fumar meu baseado
pelas ruas de São Paulo
e eu digo sim, claro, meu pai.
Nos embriagamos e decido morar com você
pelas ruas de São Paulo
e você diz sim, claro, meu filho.

Na Igreja da Sé
derramamos nosso sangue tentando impedir
meu nascimento.
Logo você se cansa e começa a lamber
tudo de volta.
Eu mergulho no meu rio vermelho
e no entanto sigo vivo distribuindo dor.

Desde esse dia
nunca mais te vi,
pai.

Me ceguei tentando não te ver,
me adoeci tentando não te ver,
pelas ruas de São Paulo.

Agora é de tarde
e esmolando na avenida Paulista surge
uma aparição branca que quer minhas migalhas.
Ela me persegue pelas ruas de São Paulo.
Me bica, voa, é incansável:
quer minha morte. Eu sigo fugindo.

Que fantasma antigo vem me acertar?
Fiz tudo tentando não te ver.
É possível?
É você,
pai?
É você, que sangra meus olhos mortos
uma última vez?

Se aninhe no meu umbigo, se aqueça
no meu intestino.
Enquanto escrevo
pelas ruas de São Paulo e
nos transformamos em horror
nessa
Santíssima Andrade.

 

AMÉRICA

 

I

bicicletas na paisagem flores de
cocacola céu roxo dos meus
sonhos onde pasto minha bunda
ao vento pega minha mão
diz que nunca quando for
tempo demais

 

II

mochila nas costas seus olhos
comigo sente meu peito
derretido faca e pílula
falta de ar suor saliva
vem meu bem come minha
língua

 

III

um brinde à saúde das
estátuas de fortes dentaduras
que guardam estas
memórias labirinto libertino
a cadeira está cansada boa
viagem
não retorne

 

os bares do estado

 

CRIADOR

 

a estátua demolida
sob o peso das águas
onde ferozes
meus peixes de cal
dançam a morte

faz cócegas na barriga
de navios e plantas
ainda adormecidos nesse
cobertor de oceanos
mas o bastante

para que gargalhadas
cachoalhem os ombros peludos
das montanhas

para que risos
rasguem rios de fome na
terra o bastante

para um poeta soltar
pequenas lágrimas
de sal
sobre seu jardim de
concreto

 

 

 

uma estrada rasga a cabeça
só tem um limite lento
de velocidade

os carros andam e param e
cruzam o rosto de ponta a ponta
como o sol se pondo assim como
uma pessoa parte

sábios e professores passam e param e
se escondem atrás de arbustos de orelhas
e nos olhos só se escondem
lentos

como o vento
a ideia e
o som do horizonte

 

 

REDENÇÃO

 

1.

senta entre minhas pernas
e nossas mãos coladas moldando
à revelia das almas o formato
dos passos obscuros
sondando a casa
quando ainda crianças
nos sonhos nos
escondíamos

a argila gira ao nosso
ritmo
inútil esconder as olheiras
as marcas nos corpos
esculturas ainda frias os
inchaços daquele amor
sujo

eu tive sorte e hoje caminho
por nuvens macias a
cantarolar qualquer som amigo

mas seus pés já calcinados
que o tempo não perdoa o
tempo e passa e
mastiga os ossos já sem
sentir
minha irmã
para sempre
escondida debaixo da terra

 

3.

a geladeira não guarda
a memória das marmitas
dos medos congelados
do êxtase de um morango
mofando
no silenciosamente de suas gavetas
junto ao par esquecido
de olhos assim sem
corpo
profundamente pretos não
guarda

 

8.

voracidade de cinzas
consumindo úteros
as fumaças sobem
em delícia

no suntuoso salão
o ar enrroxeado
nocauteando cabeças
correntes delicadas em esplendor

as letras eletrônicas devoram um corpo humano

 
Os bares do Estado (2016), de Macaio Poetônio

os bares do estado

Poesia
livro, 96 páginas
brochura, 14 x 21
Valor: R$ 20,00 + frete

 

 




Luís Perdiz: Saudade mestiça (2016)

Luís Perdiz publicou os livros Saudade mestiça (Patuá, 2016, menção honrosa Nascente USP) e Visão incurável (Ed. Lab: Demônio Negro/Hedra, 2018), que integra a coleção Vozes contemporâneas, coordenada por Claudio Willer.

Cantor e compositor no grupo Estranhos no Ninho, é também um dos fundadores e editores do portal de literatura Poesia Primata e da Editora Primata.

Nasceu em Campinas (SP) e prepara seu novo livro, contemplado com Prêmio ProacSP de Criação e Publicação Literária.

Mais poemas e informações em: http://www.luisperdiz.com.br/.



foto: “Vibe”, Larissa Tanganelli.


Os poemas a seguir foram selecionados do livro Saudade mestiça (Patuá, 2016).



MIGALHAS

os monumentos são zoológicos do medo
violentas cortinas rasgam a noite

preciso de distinção nos dentes
instantâneos que não mordem

o jardim de apuros
onde nossas garras desaprendem o espaço

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