Macaio Poetônio nasceu em 1990 na Paulicéia, sob o signo do centauro e filho de Murilo e Roberto. É um dos fundadores do portal de literatura Poesia Primata e da Editora Primata, nos quais exerce as funções de editor e de diagramador. Por meio da última, publicou as plaquetes noturno (2014) e seu cadáver estava repleto de mundo (2015).
Os poemas selecionados são de seu livro de estreia Os bares do Estado (Editora Primata, 2016).
SANTÍSSIMA ANDRADE
Às vezes te encontro pelas ruas de São Paulo
mas se de longe é de perto não é.
Fantasiado de vizinho sempre me assusta
enquanto espia pela janela.
Vestido de professor entra na sala palestrando
sobre seus tormentos econômicos.
Como mendigo, vem fumar meu baseado
pelas ruas de São Paulo
e eu digo sim, claro, meu pai.
Nos embriagamos e decido morar com você
pelas ruas de São Paulo
e você diz sim, claro, meu filho.
Na Igreja da Sé
derramamos nosso sangue tentando impedir
meu nascimento.
Logo você se cansa e começa a lamber
tudo de volta.
Eu mergulho no meu rio vermelho
e no entanto sigo vivo distribuindo dor.
Desde esse dia
nunca mais te vi,
pai.
Me ceguei tentando não te ver,
me adoeci tentando não te ver,
pelas ruas de São Paulo.
Agora é de tarde
e esmolando na avenida Paulista surge
uma aparição branca que quer minhas migalhas.
Ela me persegue pelas ruas de São Paulo.
Me bica, voa, é incansável:
quer minha morte. Eu sigo fugindo.
Que fantasma antigo vem me acertar?
Fiz tudo tentando não te ver.
É possível?
É você,
pai?
É você, que sangra meus olhos mortos
uma última vez?
Se aninhe no meu umbigo, se aqueça
no meu intestino.
Enquanto escrevo
pelas ruas de São Paulo e
nos transformamos em horror
nessa
Santíssima Andrade.
AMÉRICA
I
bicicletas na paisagem flores de
cocacola céu roxo dos meus
sonhos onde pasto minha bunda
ao vento pega minha mão
diz que nunca quando for
tempo demais
II
mochila nas costas seus olhos
comigo sente meu peito
derretido faca e pílula
falta de ar suor saliva
vem meu bem come minha
língua
III
um brinde à saúde das
estátuas de fortes dentaduras
que guardam estas
memórias labirinto libertino
a cadeira está cansada boa
viagem
não retorne
CRIADOR
a estátua demolida
sob o peso das águas
onde ferozes
meus peixes de cal
dançam a morte
faz cócegas na barriga
de navios e plantas
ainda adormecidos nesse
cobertor de oceanos
mas o bastante
para que gargalhadas
cachoalhem os ombros peludos
das montanhas
para que risos
rasguem rios de fome na
terra o bastante
para um poeta soltar
pequenas lágrimas
de sal
sobre seu jardim de
concreto
●
uma estrada rasga a cabeça
só tem um limite lento
de velocidade
os carros andam e param e
cruzam o rosto de ponta a ponta
como o sol se pondo assim como
uma pessoa parte
sábios e professores passam e param e
se escondem atrás de arbustos de orelhas
e nos olhos só se escondem
lentos
como o vento
a ideia e
o som do horizonte
REDENÇÃO
1.
senta entre minhas pernas
e nossas mãos coladas moldando
à revelia das almas o formato
dos passos obscuros
sondando a casa
quando ainda crianças
nos sonhos nos
escondíamos
a argila gira ao nosso
ritmo
inútil esconder as olheiras
as marcas nos corpos
esculturas ainda frias os
inchaços daquele amor
sujo
eu tive sorte e hoje caminho
por nuvens macias a
cantarolar qualquer som amigo
mas seus pés já calcinados
que o tempo não perdoa o
tempo e passa e
mastiga os ossos já sem
sentir
minha irmã
para sempre
escondida debaixo da terra
3.
a geladeira não guarda
a memória das marmitas
dos medos congelados
do êxtase de um morango
mofando
no silenciosamente de suas gavetas
junto ao par esquecido
de olhos assim sem
corpo
profundamente pretos não
guarda
8.
voracidade de cinzas
consumindo úteros
as fumaças sobem
em delícia
no suntuoso salão
o ar enrroxeado
nocauteando cabeças
correntes delicadas em esplendor
as letras eletrônicas devoram um corpo humano
Os bares do Estado (2016), de Macaio Poetônio
Poesia
livro, 96 páginas
brochura, 14 x 21
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