Marianna Perna: A Cerimônia de Todas as Vozes (2018)

Marianna é, de formação, historiadora e pesquisadora musical, mas também pesquisadora livre do corpo e da voz, com um especial apreço pela poesia, este lugar onde considera habitar toda a dimensão mágica e suas sempre infinitas e renováveis trilhas de volta à voz da alma. Deseja que os poemas possam trazer de volta nosso ser poético oculto e vibrante – re-encantá-lo pelo chamamento dos versos. A Cerimônia de Todas as Vozes (Urutau, 2018) é seu primeiro trabalho solo autoral, uma proposta de transpor as fronteiras de gêneros artísticos.

 

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro A Cerimônia de Todas as Vozes (Urutau, 2018).

 

 

A FEITICEIRA

 

Numa outra hora, vida
distante
que perdura
pela areia
reluz, me seduz.

Ainda vejo os olhos do tempo
vermelhos, congelados.

Sal e mais sal.

Em natureza profunda
lá onde não há chão,
mas se pisa em raízes
se reencontra a carne
de pura seda, eterna
vasta
em território escuro
e sem armadilhas.

Nas trevas, o amor brilha.

 

 

Leia mais

Ruy Proença: Caçambas (2015)

Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nº 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007) e Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007).

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Caçambas (Editora 34, 2015).

 

 

ZONA DE CONFORTO

 

se você
viu um prego
em minha testa

e acha
que isso faz
todo o sentido

então viver
é menos perigoso
do que eu imaginava

vamos
pendure
um quadro

 

Leia mais

Murilo Mendes: Poemas (1930)

Murilo Mendes, nasceu em Juiz de Fora em 1901 e faleceu em Lisboa em 1975. Um dos grandes poetas do século XX,  bebeu de fontes distintas como a proposta modernista brasileira, o catolicismo, o cubismo,  o surrealismo e o concretismo. Sua vasta produção artística inclui os livros de poesia: Poemas (1930), Bumba-meu-poeta (1930), História do Brasil (1933), Tempo e eternidade – com Jorge de Lima (1935), A poesia em pânico (1937), O Visionário (1941), As metamorfoses (1944), Mundo enigma (1945), Poesia liberdade (1947), Contemplação de Ouro Preto (1954), Tempo espanhol (1959), Siciliana (1959),  e Convergência (1970).

 

 

Realizaremos a retrospectiva de sua trajetória poética numa série de publicações. Nesta primeira, selecionamos poemas do seu livro de estreia  Poemas (Dias Cardoso, 1930).

 

 

CANÇÃO DO EXÍLIO

 

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam  gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

 

Leia mais

Pedro Tostes: Medusa – Na Casamata de Si (2018)

Pedro Tostes é poeta reincidente e insistente. Graduado Nos Rolês com PhD em Pilantropia Cultural. Seus crimes foram mais conhecidos como o mínimo (2003), Descaminhar (2008), Jardim Minado (2014) e sua mais recente contravenção Na Casamata de Si. Foi detido, averiguado e apreendido pelas autoridades por porte e comercialização de livros em prestigiosa Fresta Literária. Com a organização delituosa Poesia Maloqueirista, entre outros crimes, editou a infame revista Não Funciona, que realizou 20 golpes bem sucedidos com mais de 20 mil incidências literárias na primeira década do século. Apesar da aparência dócil e gentil, o indivíduo citado apresenta alta periculosidade. Sua cabeça está a prêmio. Caso o encontre, favor informar às autoridades.

 


foto: Renata Armelin.

 

O poema a seguir está presente em seu novo livro Na Casamata de Si (Patuá, 2018).

 

 

MEDUSA

 

Dias cinzas, dias frios
que espalham sobre as folhas
a fuligem,
não façam desse canto
mero desencanto na luta
do homem contra a Górgona
das engrenagens contínua;
mas brado de guerra
retumbante, retomando
os territórios do sentido.

Pois do alto de arranha-céus
eu vi tuas serpentes
se espalhando pelo solo
– Anacondas sufocando
os pesares nas carruagens
do tempo comprimido entre
as agendas.
Vi homens e mulheres
tomando pílulas de alívio
e felicidade, irmãos
rotos de esperança
buscando restos no lixo
e fazendo companhia aos
ratos, vi cérberos
adestrados latindo contra
inocentes, templos
erguidos ao Céu como
monumentos do caos e em
todos os cantos era
possível ver suas marcas.

As ruas tomadas de
estátuas inertes
caminhando – homens de pedra
no cachimbo se perguntam
na angústia o que sobra
dessa dor – comprovam
que a besta-fera domina
esta paragem
& destrói & destroça
tudo aquilo que encosta
– torna concreto
o desencanto secreto
do ser.

Sigo no contrafluxo
do tempo que sufoca os irmãos
iludidos pela sua imagem
no espelho;
me perco em seus recantos:
Anhangabaú, Carandiru, Tietê
Tucuruvi, Butantã
– nheengatu esquecido nas esquinas.
Eu sou o genocídio indígena,
sou Sepé Tiaraju & Borba Gato
& tenho nas mãos o sangue dos meus antepassados.

Tupiniquim de Araque
não confundo mais o cheiro da selva
com o óxido carbônico de tuas serpentes:
tu, monstro ctônico, cavalgada e cavalgante
sobre nós se constrói
pedra sobre gente sobre pedra
sobre gente sobre gente sobre
pedra sobre pedra sobre gente
soterrando os sentidos.

Por sobre os prédios vejo
Éris dançando ao alvorecer
seu balé diário;
eternos retornos apertados
nas lotações, vias & subterrâneos
do teu Hades;
sextas histéricas na volúpia da busca
vazia, repleta de hiatos buscando
no gozo dionisíaco
a argamassa que preencha;
fins de semana, desespero
do sossego que antevê uma
segunda depressiva
para Sísifo;
pequenas tragédias diárias
traçam retratos de Pompeia.

Quem entra e corrói
no cerne das horas
o fundo do humano?
Quem manda e a
mando de quem
que se mata
de frio de fome
de bala
qualquer irmão?
Por quem
dobram os Sinos
da Sé?

111 chacinas diárias
21 milhões de seres empedernidos
457 telefonemas não atendidos por segundo
232 estupros registrados por mês só na capital
1 trilhão de saudades
12 crises de choro por dia
7 bilhões de angústias
e em cada pessoa
transformada em estatística
eu sinto a sua presença.

O cheiro se alastra
pelo templo que é o corpo
e é o mundo também e logo
ouço o tremor no chão
com o peso dos seus temores
monstro à espreita
teu fino exército frio
engravatado
tecendo as mordaças,
vidas desperdiçadas
na miséria ou no luxo;
mas se Perseu sou eu
com que espada é que luto?
tenho apenas minha pena
de ser torto e ter devir;
era pra ter escudo
mas nos deram espelhos
eis que encaro seu reflexo
e vejo a face da besta:
era eu que ali estava
parado atrás de mim.

Cada fera tem seus mistérios
e a ti não deveria olhar
por não saber o que veria
e já que não te enxergo
me guio pelas sombras
e pelos ecos do teu ser;
não se sabe se é sina
ou ilusão a simetria entre
o homem e a besta,
mas quando o perigo
se aproxima não hesito
e arranco a cabeça
da Górgona enquanto
caio morto no chão.

E tudo que era você
e aquilo que te cercava,
suas raízes podres que daqui
se espalhavam lentamente
definham e desmancham
demolem cada alicerce
de tua torta estrutura.
E a chuva que desaba dos céus
alaga tuas ruas e esquinas
submersa a cidade desafoga
e das cinzas dos teus dias
surgem flores de Afrodite
que saúdam o novo tempo
mesmo no cheiro de podre
pois é da morte que surge
vida nova em teu solo.

 

 

José Antonio Gonçalves: Cavernas, Arenitos e Poemas (2018)

José Antonio Gonçalves nasceu em Mogi Mirim, SP, em 1941. Reside atualmente em São Paulo. Formado em Direito pela PUC, dedica-se à literatura há mais de vinte anos. Já publicou dois livros de poesia: O amor nos sertões: fragmentos (2010) e Eu que não creio, mas rezo contrito (2017).  Em 2018, lançou o livro Cavernas, Arenitos e Poemas, com poemas escritos a partir de 2016, que revela influência marcante de autores surrealistas e seus precursores.

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Cavernas, Arenitos e Poemas (EdLab, 2018), que integra a coleção Vozes contemporâneas, coordenada por Claudio Willer, pelo selo Demônio Negro e pela editora Hedra.

 

OURO INFILTRADO

 

                              Um anel vivo num dedo que vai morrer:      
                                            Herberto Helder, De antemão  

um sopro sobre o golfo embala
animais que caminham no céu
          o chão da noite continua áspero
          ofusca inquieto o horizonte

atmosfera de sonho
dominação do sono amigo da morte
o corpo em êxtase vence a fome

mãos frias
sem delirar
choram o olhar ausente nas pálpebras

o movimento impossível do braço
é cansaço que a mão trêmula
não ilumina

 

 

Leia mais