André Merez nasceu na capital paulista em 1973, iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90, cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 18 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. É autor do livro Vez do Inverso (Editora Patuá, 2017), editor da revista POESIA AVULSA e já teve seus poemas publicados nas revistas Mallarmargens, Diversos Afins, Germina e Gueto.
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Vez do Inverso (Editora Patuá, 2017).
CORPO DA PALAVRA
Agora
o poema tem outra causa.
Seu efeito, lume ofuscado,
pousa
ainda
na concretude fixa e fiel
do corpo da palavra
vaza.
Depois,
o signo escorre
e brilha o seu sêmem,
penetra a cavidade e,
finalmente, fecunda o
óvulo da palavra.
RIO DOCE
E o rio que era doce?
A lama matou.
E os peixes, a vida, a população ribeirinha?
A lama matou.
E os sonhos, os desejos, as virtudes e tudo?
A lama matou.
A lama que escorre,
o líquido podre, chorume das almas
dos homens da Vale,
dos homens de cifras,
números,
contratos,
benefícios,
financiamentos de campanhas.
Homens sem poesia,
sem piedade,
sem pêsame,
sem arrependimento.
O rio sem vida vai gritando até o mar
pela justiça que nunca veio,
mas ninguém ouve, estamos surdos
não temos ouvidos para o rio.
O rio se foi,
se perdeu.
E nenhuma urgência é maior
que o rio estendido sem vida no mundo.
O rio morto era doce, acabou.
VEZ DO INVERSO
Agora é a vez
de quem não,
do sem berço,
do sem terço,
do sem verso.
Agora é a hora
de quem nunca,
do que arrisca,
do que ignora,
do que perdeu
e não tem hora.
Agora é a vez
do que jamais,
do não visto,
o esquecido.
Do que escuta
mas não fala,
do que trabalha
mas não lucra,
do que paga
mas não leva.
A versão já não conta,
agora é inverso título
e outro grito se impõe.
É a vez do inaudito,
o maldito ignorado.
Agora
é a vez do inverso.
NO QUE SE VER
Inclinar o corpo,
erguer em arcos
as sobrancelhas
e dilatar as pupílas.
Assim prever-se e
absorver minúcias,
cortar desmundos,
violar as distâncias
supor-se aço para
remover enganos,
negar algaravias,
ver o poeta nu e
em pelos próprios
e espelho público.
A língua à mostra,
réstias de dentes
caninos e molares,
máquina amorfa
aparelho fonético.
Silente e patético,
anônimo sujeito
de qualquer lua.