Leonardo Marona: Baby Buda (2021)

Leonardo Marona (1982) nasceu em Porto Alegre. Vive no Rio de Janeiro. Publicou os livros: Pequenas biografias não-autorizadas (poesia, 7Letras, 2009); l’amore no (poesia, 7Letras, 2011); Conversa com leões (contos, Oito e meio, 2012); Óleo das horas dormidas (poesia, Oficina Raquel, 2014); Cossacos Gentis (romance, Oito e meio, 2015); Herói de Atari (poesia, Garupa Edições, 2017); Dr. Krauss (novela, Oito e meio, 2017); Uma baronesa às quatro da madrugada (poesia, Ed. Urutau, 2018). Acaba de lançar o romance Não vale morrer pelas Edições Macondo.


Os poemas a seguir foram selecionados do livro Baby Buda (Corsário-Satã, 2021), disponível para aquisição neste endereço.




BABY BUDA


quero aqui no meio desta
confusão poder aprender
a estar desatento de mim
sem, com isso, me perder.

observo os tipos vaidosos:
o que conta seus ganhos,
o que conta suas perdas,
o que diz como não conta,
o que conta como não diz.

quero ser o que não conta
mas sabe o que não conta
e, sem contar, se esquece
e se esquecendo, aprende.

fazer do pequeno, grande
e, do grande, o que passa
sem deixar grande rastro.

olhar para o varal vazio,
tão perfeito de ausência.
não pensar na roupa suja
mas no corpo que cobriu
a roupa suja com sujeira.

derrubar todas as portas,
receber o que sem nome
vive atrás do meu futuro
e morre além do passado
na mata funda da clareira.

participar da grande feira:
os bolsos cheios de nada,
com a fome dos planetas.

arrancar por fim os olhos
e tomar banho no escuro:
escorrer no ralo do nome.

dar migalhas aos filhotes,
deixar sem fazer barulho
o leão dormir com fome.



GARY SYNDER FAZ 90 ANOS

recolher um verso sob o sol
e outro, molhado de chuva,
deixá-lo secar com as frutas.

felicidade é essa viagem
com pedras nos sapatos
e um samba no coração.

não ligo que o mundo
esteja perto do seu fim
e que nunca tenhamos
sabido como estar nele.

quero o bafo bruto
do seu frescor bucal,
quero ouvir o hino
de todas as entranhas.

nos sonhos mais úmidos,
corpos caem de muitos
metros, sempre de pé,
depois correm de volta
para dizerem como foi.

como um gato que sobe
em minhas costas duras
ou um trompete agudo
quando bate meia-noite.

como a horda de vidas
na fila de uma atenção
miúda e tão ambidestra
nos cumes da gratidão.

quase raro o pendor
que compartilhamos
em cacos de versos,
água aberta que rola
diante da cachoeira
do que está por vir
e ainda não vemos.

água que se bebe
na sede invertida,
areia de projetos.

e sinto que as tardes
cozinham os alardes
enquanto aprendo
a ficar ereto, sentado,
com garras fincadas
nas costas dos gritos.

comer os versos como
quem come uma fruta.
então engolir sementes
para gerar no estômago
uma existência inédita.



LEVO SUAS FOLHAS EM ALGUM CAIXÃO DE AMOR


você que tem folhas mortas dentro dos olhos,
você que não sei jamais, e que sou jamais.
você que ensinou o vazio e a cruz enaltecida.
você fala de coisas em um passado repentino.
você fala pouco, muito pouco, mas seus olhos
mostram folhas e as folhas mostram árvores.
sempre tive medo, velho, velho medo sempre.
aprendi talvez o medo na ternura do silêncio
pescado junto às sobras do que não pudemos
fazer por cada um de nós na hora precisada.
a hora conjunta em que se ergue a paz falsa.
levo suas folhas em algum caixão de amor.
o amor de onde vim e para onde não voltei.
hoje procuro o amor e encontro o que racha.
o amor é uma coisa e a palavra amor é outra.
tenho perguntas e nenhuma letra que forme
a vulgaridade das perguntas que tenho sem
que impere fazê-las quando rondam ruínas
por nossos corpos que procuram a palavra
e duvidam tê-la achado e dizem sem parar.
o silêncio do ódio é nossa língua materna.
cantamos raivosos a língua tímida do veto.
amamos em silêncio o que não tentamos.
os barulhos dessa vida já não te assustam?
tenho medo dos remédios porque a cura
não tem espaço onde seria doce a perda.
nossa perda compartilhada não vocifera
os decibéis de erros em que nos víamos
tão parecidos quanto desfiles de samba,
mas sem a consciência de toda a máfia
que cria as festas, cria crias, cria choro.
a bateria não recua em nosso carnaval.
quero rever a beleza de todo esse ódio.
quero fazer da sua estirpe meu presídio.
quero sofrer devagar, como um velho.
ser o pássaro que nos seus olhos meus
bica as flores gordas de nosso musgo.
vê, pai, que vejo as coisas em blocos,
de torres roídas de onde corpos pulam,
mas não despejo frases em linha reta.
melhor, despejo, mas veja como ficam
fora da nossa babel de coisas a dizer.




CANINO À ESQUERDA


ontem dormi tarde e
tentei me masturbar.
dormir tarde foi bom.
masturbação foi mais
triste do que esperava.

durante a noite sonhei
que perdia um dente
da arcada superior.
exatamente o dente
canino à esquerda.

levantei bem frustrado
tentando ser um buda,
estúpida necessidade.

coisa óbvia é perder
os dentes, aprender
a morrer é bem fácil.

mas e se a morte vier
num susto, mesmo um
bom de sentir, como,
no sonho, passar a língua

no buraco e sentir que
o dente não estava lá,
mas uma superfície lisa
como um bebê no útero?

acreditar nas pessoas
é mais fácil quando nós
não somos uma delas.
essa é para você, buda.

e o futuro se aproxima
lentamente, como um
elefante que esmigalha
na sua passagem tímida
a famosa flor de lótus,
paz que não comunica.

depois fugir à perfeição
e na trilha ver o velho,
o doente e o cadáver;
só então permanecer.



Primata

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