Lubi Prates (1986, São Paulo, Brasil) é poeta, editora e tradutora. Tem três livros publicados: coração na boca (2012), triz (2016) e um corpo negro (2018), que foi contemplado pelo PROAC com bolsa de criação e publicação de poesia. É sócia-fundadora e editora da nosotros, editorial, e é editora da revista literária Parênteses.
Os poemas a seguir foram selecionados da obra um corpo negro (nosotros, editorial,2018).
NÃO FOI UM CRUZEIRO
meu nome e
minha língua
meus documentos e
minha direção
meu turbante e
minhas rezas
minha memória de
comida e tambores
esqueci no navio
que me cruzou
o Atlântico.
PARA ESTE PAÍS
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiram malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha bagagem pesa tanto.
.
arrancaram meus olhos
e cada pelo do meu corpo,
cortaram minha língua.
arrancaram unha a unha,
dos pés e das mãos.
cortaram meus seios e o clitóris,
cortaram minhas orelhas,
quebraram meu nariz.
encheram minha boca e os outros vácuos
de monstros:
eles devoraram tudo.
só restou o oco.
então, eles comeram este resto,
limparam os beiços.
depois, vomitaram.
.
ser mulher é uma benção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande
ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
ser mulher é uma benção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição
eu descobri agora que
não sou mulher
estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra
e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte para terra e
corro
nado
danço
descabelo-me
eu descobri agora que
não sou mulher
eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito
nunca pari
eu descobri agora que
não sou mulher
ser mulher é uma benção.
HASTA AQUÍ, HASTA MÍ
você traz na boca
Todo o gosto do mar
e eu tento adivinhar
inutilmente
quantos oceanos você atravessou
hasta aquí, hasta mí
quais oceanos você atravessou
hasta aquí, hasta mí
para guardar em si
tanta água, tanto sal
em cada gota de saliva.
você traz na pele
todos os tons da terra
e eu tento adivinhar
inutilmente
quantos continentes você percorreu
hasta aquí, hasta mí
quais continentes você percorreu
hasta aquí, hasta mí
para guardar em si
tanta cor & esse cheiro que acentua quando tempestades.
você diz reconhecer
o gosto de mar que trago na boca
os tons de terra que trago na pele
fácil perceber então que
atravessamos percorremos
os mesmos oceanos os mesmos continentes
hasta aquí
: somos filhos da África
e tudo que contamos através dos nossos corpos
fala sobre nós, mas no profundo da memória
guarda nossos ancestrais.
Muito bom seus poemas sou negra mas me orgulho de ser o que sou.