Caipira punk de Penápolis, sertão paulista, Fred Di Giacomo já foi chamado de “polymath” (algo como ‘renascentista’) pela Vice Americana e elogiado por fazer um “free-jazz que junta repertório de vasta leitura com a velocidade fragmentada da sua geração” pelo jornalista Xico Sá. Fred coleciona poemas, contos, games e vídeos que usa como garrafas para lançar suas histórias ao mar. É autor de Canções para ninar adultos e Guia poético e prático para sobreviver ao século XXI lançados pela editora Patuá; além de livros infantis e jornalísticos. Prato Firmeza – o guia gastronômico das quebradas de SP, que editou e co-coordenou, é finalista de 2017 no Prêmio Jabuti. Filho de professores idealistas que o criaram rodeado de livros, o autor revezava bandas punk com poemas em zines e blogs em sua adolescência. Migrou para São Paulo para se arriscar como jornalista e chegou a redator-chefe, na Editora Abril. Nesse período, foi pioneiro na criação de newsgames, como Filosofighters e Science Kombat, e teve infográficos premiados internacionalmente. Por projetos como esses foi acusado pela Vice de redefinir a narrativa multidisciplinar. Depois de sete anos e meio, pediu demissão para morar em Berlim e tocar sua investigação sobre a felicidade – o Glück Project. Também compõe letras e toca baixo na Bedibê. Seus textos foram traduzidos para o inglês, espanhol e o alemão. Escreve para sobreviver.
foto: Felipe Cotrim
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Guia poético e prático para sobreviver ao século XXI (Patuá, 2016), disponível para compra neste endereço.
CARTA AO FILHO
Oh, meu filho, escute bem.
Oh, meu filho, que ainda não brotou,
Brote bela flor,
venha com amor.
Oh, meu filho, escute bem.
Quando o seu pai se for,
não for mais eu,
Souber que já morreu.
Recorde-se:
Da terra, somos o sal
Do destino, o leme
Da existência, o intento
***
Dinheiro não é importante.
O que importa são as pessoas,
a arte e os pequenos prazeres:
Um café, uma cerveja, fazer amor
Ler o céu,
dormir abraçado com quem se benquer,
Ajudar sem ansiar nada em troca.
Ouvir uma canção que nos chova os olhos
e aprender algo novo a cada dia.
Não engolir a miséria,
Não destratar o próximo,
Não abaixar a cabeça.
Amar o outro, mas amar a si mesmo.
E devolver o mundo um pouco melhor
do que se recebeu
***
Um pouco melhor
do que
se recebeu
***
Meu filho querido,
Você ainda não nasceu,
Mas é um pequeno sonho meu.
Meu filho, o que importa
É só o amor
Que um dia me deram e, hoje, te dou.
EU ODEIO MINHA GERAÇÃO
Tentei ser uma boa pessoa
Meditei
Refleti
Fiz análise
Tomei psicotrópicos
Desbundei
Fumei maconha
Viajei
Mas continuo um merda.
***
Eu odeio minha geração
Toda bundamolice, egoísmo, choradeira e egolatria
Eu canto minha geração e vomito na minha geração
Porque cada átomo que pertence a vocês
Pertence a mim
E isso me dá náusea.
Hoje arranquei os olhos da televisão
Queimei os campos de futebol
Flanei pelas farmácias que vendem alegria artificial
Ri das revistas que prometem corpos perfeitos para o
verão
E das universidades que preparam moleques para vender
seus sonhos no mercado de mentiras
Eu peguei todos os meus sonhos, embrulhei num pacotinho
reciclado
e troquei por uma plaqueta escrita “empreendedor”.
Um amigo que era DJ fez a trilha sonora ideal para que
inscrevêssemos tudo isso num edital do governo
Perdemos o prazo porque um pequeno grupo de caraspintadas
fez um protesto relâmpago que parou a rua
Protestavam contra a erupção do vulcão
Protestavam contra o passar veloz do tempo
Protestavam contra as árvores que fazem striptease no
outono violento
Protestavam contra os rios que se despedem sem dizer
adeus
***
O mundo entorta os certos
e premia os cuzões
O mundo alimenta seu ego
E te faz crer que você é especial
Não acredite
Você é bosta
Adubo de plantas
Poeira cósmica
Carbono
Água
acaso
O poema mais bonito
que Deus jamais escreveu
(1998-2014)
.
Se, enfim, ousei
Um primeiro passo torto
Um passo pouco
Este pipoco
Então, já não sou o outro
Que hesitava
Em caminhar.
MINHAS RAÍZES EU PARTILHO COM AS VELHAS ÁRVORES DE CASA.
Eu tenho saudades daquelas árvores velhas
das suas cascas,
O cheiro de suas flores
E suas folhas secando no chão.
Sinto saudades de trepar na pitangueira
e na mangueira sábia,
De sentir suas rugas roçando no peito;
Saudades da pequena jabuticabeira cabeluda
E da acerola que ocupava, meditativa, o centro do quintal
O velho quintal era um universo místico,
Uma selva, um templo, um picadeiro
Marcado por árvores que eu conhecia de cór.
Como o limão cravo que se enroscava amoroso no pé de
boldo.
Até dos pequenos morcegos eu sinto falta, quando
devoravam as frutas
Faziam barulhos e, às vezes, se perdiam, cegos, dentro de
casa,como as aleluias que se amavam, intensas, no verão.
Saudades das cigarras barulhentas
E das formigas bundudas.
Depois foi só concreto, prédio
Avenidas, carros
Neve,
E eu tão distante de mim que me perdia
Sem me conhecer.
E vocês com seus tribunais no olhar
Achando que eu surgira ontem, por geração espontânea,
Em alguma rua de Pinheiros,
Em algum meeting de publicidade,
Em algum café com menu escrito a giz na parede negra que
queria estar em Williamsburg.
Vocês não conhecem o cheiro da terra seca que a chuva
molha,
Nem a textura da fruta pão,
Nem o pé de mexerica que nunca vingou.
Vocês não cravaram o casco do pé no espinho da primavera
fundo,
Nem viram a grama morrer de sede e perder lugar
Pro mato oportunista,
Não.
Vocês acham que me conhecem,
Mas mal se interessam em perguntar de onde eu vim
E já julgam o passado pelo futuro.
Não, meus amigos, em qualquer lugar do mundo,
Vocês
Não me conhecem, não,
Nunca vão conhecer
Tão longe das árvores
Que me viram crescer.