Mariana Basílio (Bauru, 1989) é escritora, poeta e tradutora. Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Bauru (2012). Mestre em Educação pela Unesp, campus de Rio Claro (2015). Autora dos livros de poesia Nepente (Giostri, 2015) e Sombras & Luzes (Penalux, 2016). Recebeu em outubro de 2017 o prêmio ProAC de criação literária do Estado de São Paulo, contemplando a publicação de sua terceira obra poética, Tríptico Vital (prelo, 2018). É colaboradora dos portais Zonadapalavra e Liberoamérica. Possui poemas, entrevistas, resenhas e traduções publicados em diversas revistas do Brasil e de Portugal, entre elas: Alagunas, Diversos Afins, Escamandro, Efémera, Garupa, Germina, InComunidade, Inefável, Limbo, Mallarmargens, Oceânica, Odara, O Garibaldi, O Equador das Coisas, Raimundo, Vida Secreta. Site para contato: www.marianabasilio.com.br
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Sombras & Luzes (Penalux, 2016).
1 fluxo poético, da primeira seção “Antropofagias”
I
os nascimentos; as antropofagias; as artérias são todo o plus sobre o
pavor dos ossos e do tempo; os mapas e as lacunas que nos libertam
entre escutas e escritas – assim vamos planos, vamos de novo ver o
pôr-do-sol
8 poemas, da seção principal “Sombras & Luzes”
IV
Não vás para longe. Não chores por dentro.
Trata do silêncio como se fosse fácil.
Trata do vazio como se fosse óbvio.
Trata do coração e não te vás.
Que os ventos não viveram a ti.
Os lugares não beberam teu sangue.
A bala percorrendo os campos e as
costas. A bala atravessando as vísceras
e os risos. Eram como urubus em pele
de gazelas. O invisível dos olhos
esbugalhados. Ponderação.
Diziam eles.
Ponderação.
Chorei por fora. Nua de alma, nua de
lápide. Em aquarelas percorri os seios,
deslizando sonhos. E os tintos tons de
carvalho engoliram minha alma.
Mesmo dando-me por inteiro. Mesmo
tendo sido a crueza da verdade, eu,
como filha da noite, negação dos
frutos pisados, fui caduca poeta,
fui ledo engano.
Mas dizia meu peito: não é tarde.
Lembra-te, não. Mesmo que digam
que o nunca é tua vida, o brilho
escuro da noite é a única
sutileza acertada.
VI
Cada um é a medida das coisas
Paul Valéry
Espiritual. A profundidade do inesperado no
vislumbre das coisas. Aos retratos d’água.
Cada um é a medida das coisas.
Cada um é a medida das almas.
Quando penso total, quando penso
atemporal. Somos lampejos sob
lampejos. Espirituais, em lampejos!
Na energia da noite que são sustentos.
A tudo que se move por entre as coisas.
Desencarnam-se os órgãos, criam-se enlaces.
Espiritualmente, o amor corta-nos em faces.
Fazendo-nos mar, fazendo-nos milésimos
de pares. O amor-passo que afunda lama
nos ares frágeis são vivas substâncias.
A profundidade do inesperado. Profundidade.
Um espanto, uma passagem. E a canção renasce.
Na medida dos mármores. Na medida do retrato.
Cada um é a medida das coisas. Cada um é.
Como encanto descontente, como celeiro em
pontes e a fábula que se pensava distante.
Somos matéria cósmica. Somos hibridas esferas.
A vida é constelação.
VII
O céu é um mar inesgotável que flutua no silêncio.
Palavras-passageiras, húmus dos nossos feitos.
VIVOS. Somos os vivos na atmosfera de reticências,
que só a água liberta nos buracos do silêncio, porque
só a ela é ofertada a propriedade que incendeia.
A tudo e a todos, reticências!
As perguntas-palavras, os astros rareiam.
Árvores, como extraordinários seres
a existir dentro de minhas veias.
A tudo e a todos, reticências!
Na vida seguimos. Nuvem, aquário, candeia.
Estimável é não enxergarmos paredes.
Porque tudo é puro e tudo é pasto,
que se pisa e que se apossa
em úmido rebento.
E nos clareia.
XVI
Um retrato oblíquo. Anacrônico.
Feito sonho & usura da realidade.
SILÊNCIO
(Ouve o silêncio.)
“O ser se abisma em núcleo central.”
Avoando pela descoberta. Como
um arco de fiéis sentimentos, e
labaredas encantadas a lançar
ensejos. Na partida lua que
divide-nos em brancos cortejos.
O SER se abisma.
Nos fios da memória. Quando se
alimenta de cada alma, em híbridas
esferas. Quando cita o dia como
noite, e se levanta como vertigem.
Nos cinco sentidos que enfrentam
o tudo. LÍRICO. Morte em partida.
O ser: abismo.
XX
Toda força do sentimento e da imaginação.
Mortos, jornais, países, relógios e luas.
Folhas de um instante. Forças a calçar
sapatos. Povoando o movimento-imagem.
Era uma vez, nós e todo o sentimento do mundo.
Humanos em pensamentos & asas de pêssego.
E Deus, que tudo assegurava, soprava atlas,
binóculos e bússolas. Pensamentos surgiam do
futuro. Ao pedalar, fundo e forte, cortando o
vento colorido – ao ponto de se voar por todo
céu. Na força de sentir o que salta da imaginação.
Vivos para sermos lembrados in memoriam.
A fazer-nos luz-total: para não escaparmos
aos sagrados momentos, e não furtarmos
os olhos fechados de um frágil bem-te-vi.
Tão efêmera será a vida de duras penas?
De tão lúcida no sonho, cantará o fundo da lua.
De tão perene na alma, soprará o mistério.
SOLENE.
XXVII
A minha força é a desordem.
Herberto Helder
Desordem.
É a chama que te alarga os olhos,
quando brilhas na escuridão e
nos braços de um pensamento.
Quando lês o impensado, a flamejar
faíscas. Célebre, como a veia que se
engrossa na garganta e nos fala:
“Eu tenho direito ao grito!”
É a chama que sustenta tuas raízes,
na bruma do passado que renasce ao
recordarmos as montanhas do mar.
Se tu a compreendes. Se abençoas
a vida em toda a sua crescente.
E das águas, embriagadas, INCENDEIAS.
XXIX
Eu sei que toco o firmamento
eu sei que toco os dedos da noite
eu sei que toco o que te prende
a um cometa desvairado
quando toco o último fado
a ser feito –
como um animal que morre
a cada novo grito do alvorecer.
Renasço neste instante.
Eu sei que é tarde quando se é cedo,
beijando-te a carne mole, a carne
que fede do ânus aos olhos
de um avestruz
por
tua
sombra,
que se recobre do pó estelar
de espadaúdos aguilhões.
Abraço-te as ferrugens, grudo
in natura e tua pele enrugada
se estica durante a tarde, se estica
e me come a consumir os miolos
do pensamento que me enlaça –
como uvas-passas estilhaçadas
nas fronteiras da qualidade
imoral (moralíssima) de fatos,
dos frutos de bocas pardais.
E eu sei que é cedo quando se é tarde,
porque toco-te as beiradas da voz, e
há um cuspe que te salta os olhos –
medonhos de medo – e que me traduz
<cética> quando sou a bendita santa
que te alarga as frontes de
pícaras
que te permite um repouso
rasteiro,
que te ilumina com os olhos
de raposa.
Porque sei.
XLVII
Todo escritor é um país estrangeiro.
Quando ultrapassa os limites do
seu coração ao cutucar
o fundo de um
silêncio, que
escapa aos
próprios
sentimentos.
Um estrangeiro de flores
rasgadas no fundo do peito.
Nos pomares desérticos de
antigos pensamentos.
Mesmo sendo poeira.
Mesmo tendo um ar pueril
que dissecaria um oceano.
Caminhando no céu
que engole,
na vida que esgana as
contas de sangue,
as gotas do tempo –
que não perdoam
o côncavo dos dedos.
Estrangeiro.
Ao sonhar alto demais
num topo de voz
que não se ouve
e
que
NUNCA
se imaginaria
tão luzente.
Em arqueiros
de nuvens
a dançar
ruas
e
carmins
em
futuros
passos.
Aos berros dos
pedregulhos,
nos acalantos
de casas que
apertam
nossas palavras
contra o peito.
A escalar
o silêncio das águas.
A ser navegante,
a ser
Correnteza.
1 fluido poético, da última seção “Uma canção de mim mesma no mar”
VII
Há de se ter consciência do mar.
É o que digo de melhor.
Mesmo que nunca saibamos
tocar o profundo de seu
corpo amargo.
O mar tem
um limite oceânico.
E todos nós não temos também?
Um mar dentro do estômago.
Um mar dentro dos olhos.