Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP) em 1930 e faleceu em Campinas (SP) em 2004. Uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX, publicou vasta e versátil obra nos gêneros da poesia, da ficção, da crônica e da dramaturgia.
Realizaremos um breve panorama de sua trajetória poética, dividido em 5 postagens. Nesta primeira, selecionamos poemas de seus livros publicados na década de 1950: Presságio (Revista dos Tribunais, 1950), Balada de Alzira (Edições Alarico, 1951), Balada do festival (Jornal de Letras, 1955) e Roteiro do silêncio (Anhambi, 1959).
Presságio (Revista dos Tribunais, 1950)
II
Me mataria em março
se te assemelhasses
às cousas perecíveis.
Mas não. Foste quase exato:
doçura, mansidão, amor, amigo.
Me mataria em março
se não fosse a saudade de ti
e a incerteza de descanso.
Se só eu sobrevivesse quase nula,
inerte como o silêncio:
o verdadeiro silêncio de catedral vazia,
sem santo, sem altar. Só eu mesma.
E se não fosse verão,
e se não fosse o medo da sombra,
e o medo da campa na escuridão,
o medo de que por sobre mim
surgissem plantas e enterrassem
suas raízes nos meus dedos.
Me mataria em março
se o medo fosse amor.
Se março, junho.
XI
Quando terra e flores
eu sentir sobre o meu corpo,
gostaria de ter ao meu lado tuas mãos.
E depois, guardar meus olhos dentro delas.
Balada de Alzira (Edições Alarico, 1951)
IX
POEMA DO FIM
A morte surgiu
intocável e pura.
Depois, teu corpo se alongou
inteiro sobre as águas.
Dos teus dedos compridos
estouraram flores
e ficaram árvores
ao sol.
Escorreguei meus braços
no teu peito sem queixa
e cobri meu corpo
com teu corpo de espuma.
………………………………………….
Ainda ontem
os homens colheram as rosas
que nasceram de nós.
Balada do festival (Jornal de Letras, 1955)
IV
a Vinícius de Moraes
Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
(Porque fui mais amante que amiga)
Sem dúvida dirão coisas que não fui.
Ou então com grande generosidade:
Não era mau poeta a pequena Hilda.
Terei rosas no corpo, nas mãos, nos pés.
Sei disso porque fiz um pedido piegas
à minha mãe: “Quero ter rosas comigo
na hora da minha morte.”
E haverá rosas.
São todos tão delicados
tão delicados…
Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
E um deles dirá um poema sinistro
a jeito de balada em tom menor…
Tem tanto medo da terra
a moça que hoje se enterra.
Fez poema, fez soneto
muito mais meu do que dela.
Lá, lá, ri, lá, lá, lá, lá.
Roteiro do silêncio (Anhambi, 1959)
I
Aflição de ser terra
Em meio às águas
Péricles E. Da Silva Ramos
Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.
1
Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Tenho me fatigado todos os dias
Vestindo, despindo e arrastando amor
Infância,
Sóis e sombras.
Vou dizer coisas terríveis à gente que passa.
Dizer que não é mais possível comunicar-me.
(Em todos os lugares o mundo se comprime.)
Não há mais espaço para sorrir ou bocejar de tédio.
As casas estão cheias. As mulheres parindo sem cessar,
Os homens amando sem amar, ah, triste amor desperdiçado
Desesperançado amor… Serei eu só
A revelar o escuro das janelas, eu só
Adivinhando a lágrima em pupilas azuis
Morrendo a cada instante, me perdendo?
Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Preparo-me e aceito-me
Carne e pensamento desfeitos. Intentemos,
Meu pai, o poema desigual e torturado.
E abracemo-nos depois em silêncio. Em segredo.
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