Heitor Ferraz Mello nasceu na França, passou a infância em São José dos Campos e mora em São Paulo. É jornalista, professor universitário, mestre em literatura brasileira pela USP e faz doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada. É autor dos livros Resumo do dia (Ateliê Editorial, 1996), A mesma noite (7Letras, 1997), Goethe nos olhos do lagarto (Moby Dick, 2001), Hoje como ontem ao meio-dia (7Letras, 2002), Pré-Desperto (Edição Caseira, 2004), Um a menos (7Letras, 2009) e Meu semelhante (7Letras, 2016).
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Meu semelhante (Editora 7 Letras, 2016).
ANTROPÓFAGOS
Tendo visto que
ao contrário deles
os portugueses
enterravam seus inimigos
até a cintura
para depois os flecharem
e enforcarem
descobriram espantados
a tortura
a crueldade
que não fazia parte
de seus ritos
antropofágicos
NOTIFICAÇÃO
Da varanda
nenhum resquício
de suicídio
Só
a vida parada
em lugar proibido
CARO EDITOR
Às vezes
tento descobrir
quem é esse cara
que se passa
por Heitor
Escreve poemas de madrugada
e depois os organiza
e os envia por e-mail
aos editores de revistas
na expectativa de que sejam publicados
reconhecidos no mar de poemas
de seus pares
afogados na mesma loucura
Esse cara que fica exultante
quando os escreve
num impulso doentio
No dia seguinte
pela manhã
com meus olhos pacientes
e ainda frescos
encontro poemas impressos
outros com retoques à bic azul
espalhados pela sala
e não compreendo
o que ele pretendia com esses versos
E ainda usou meu endereço
e me comprometeu
com editores e outros poetas
Passo horas
apagando essas bobagens
e escrevendo cartas
longuíssimas cartas
de desculpa
MÃE
Um dia
na fábrica
uma colega se distraiu
A máquina
voraz
arrancou-lhe tudo
até o couro
cabeludo
SONHO
Não era a pomba
da paz
nem da festa
do Divino Espírito Santo
Tinha olhos vermelhos
asas tensas
e um desespero
batendo nas cortinas
do quarto
OMBROS
Na noite anterior
foi um avião
nesta
um helicóptero
que de repente
lançou
uma luz intensa
dentro deste quarto
onde trabalho
Foi como
um relâmpago
que vasculha
dentro
do espaço privado
o crime
o vestígio de algum
crime
lançando-me
como uma escrita
rápida
numa lista de suspeitos
Foi como
um golpe
a luz azulou
cada canto
do quarto
Azulou meu rosto
inteiro
sentado em silêncio
absorvido
no escuro
E deixou impresso
na parede
do fundo
a gravura
de um corpo que afunda