Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte, é graduada em Letras na UFMG e tem doutorado em literatura comparada pela mesma universidade. É autora dos livros de poesia A vida submarina (Editora Scriptum, 2009), Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011), O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015) e Duas janelas, escrito em dupla com Marcos Siscar (Luna Parque, 2016).
foto: Rodrigo Valente
Os poemas a seguir são alguns dos nossos favoritos dos três livros da poeta publicados até 2015.
poemas de A vida submarina (Editora Scriptum, 2009):
AQUÁRIO
Os peixes são tristes no aquário
mesmo que não conheçam o mar
alguma coisa neles quer o amplo.
No poema
morrem sem água
na primeira estrofe.
QUINTAL
para a tristeza de uma vida sem colheita
para a indignidade da decoração
essas plantas foram vindo
como cães domesticados
cada uma de uma cor.
O DESEJO
Sou alérgica ao desejo
como ao mofo, ao mar,
aos gatos, ao leite,
aos lugares fechados, a certas flores.
Sou alérgica ao desejo –
doem-me os olhos,
incham-me as pernas,
o sexo arde
como uma caixa de abelhas
lacrada.
O desejo acende-me
como uma casa incendiada;
o desejo me deixa
sem mais nada.
RELÂMPAGO
Certas máquinas são feitas para o esquecimento.
Há dias em que sinto trabalharem em mim
as confusões do relâmpago.
Então coleciono letras, órbitas, radares.
A linha que me liga aos quadris desta noite imensa
é a mesma que sai da garganta aberta do dia.
Vejo as estrelas desenharem-se em constelações,
sei muitas coisas rápidas, precisas,
por alguns instantes.
NANQUIM
Olhos de nanquim.
Escreves o dia
para teu próprio uso.
Calas como a fruta,
repartida de sol,
e que esconde,
em seus úmidos,
seus claros.
Ardes como a água
cheia de peixes vermelhos.
Repousas como as feras,
como as mãos fechadas,
tece com cordões
teu sono violento.
E em silêncio
bates a casa aberta
onde se mora e se morre,
onde o tempo trabalha
seus meio-dias,
seus punhais, sua cega luz.
E enquanto arquitetas a vida
com restos de vinho e copos de mar,
com linhas claras e escuras
e o troco do ônibus
e a dobra de noite do sexo,
bebes a luz do dia nas cervejas,
toda a tarde na espuma branca,
tanta alegria na esponja dessa dor,
tonto amor
nos olhos de nanquim.
MARINHA
Ardo-me peixe,
movo-me estranha
entre palavras
de escama e sal.
Calo-me ostra,
clausura de algas e sexos,
casa obscura
onde o desejo mora.
A água dessa noite é habitada,
esconde seus corais de perigo,
seus olhos abertos.
Invento um amor
de amplas janelas
sobre o mar sem praias.
A VIDA SUBMARINA
poemas de Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011):
REGADOR
Num canto do jardim
onde alguém o esqueceu
pronto, ereto, o regador
aponta para o sol
embaraçadas por dentro
flores rápidas ou lentas
florem
findam
MITOLÓGICAS
Mortos em águas calmas
conservam os cabelos lisos
mortos em águas revoltas
os trazem encaracolados.
Eu, que morri de amor,
tenho os cabelos negros
pois morri em águas turvas
tenho os cabelos longos
pois morri em águas fundas
– sigo descabelada.
À BEIRA-MAR
Se eu vivesse
à beira-mar
teria
outra cor
outros cabelos
outras maneiras
de ferir-me
ou alegrar-me
me apartamento
meus sapatos
meus livros
minha boca
meus olhos
estariam cheios de areia
de céu de falésias
de gaivotas de água
eu me apaixonaria
por homens diferentes
e decerto aprenderia
a dançar
teria um senso de direção
mais apurado
gastaria meu dinheiro
com outras coisas
e as palavras
que eu usaria
seriam outras
talvez tivesse um altar
para anjos anfíbios
e obscuros deuses
do mar
talvez desse
festas
vestisse apenas
branco
gritasse com
os pássaros
talvez frequentasse
à tarde
a biblioteca municipal
teria outro ritmo
outro cheiro
outra velocidade
e pensaria no mar
de outro jeito
– eu perderia o mar
se o tivesse sempre por perto
como perco minhas canetas
meus guarda-chuvas meus isqueiros
essas coisas baratas
fáceis de encontrar?
I LIKE MY BODY
o meu corpo tão mais bonito
junto ao seu
músculos, pelos
meus seus cabelos
encostados nossos
joelhos juntos
densos, compactos
acidentes de ossos
nos seus braços
os meus braços
tão melhores
mãos encontradas
ao acaso das vértebras
um caminho
áspero, liso
pela pela
(sua língua
lenta
entre
entra)
o meu corpo tão mais bonito
junto ao seu
côncavas, iguais
nossas bocas
se recebem
DA ARTE DAS ARMADILHAS
O seu corpo para o meu:
seta,
precisamente
Inaudível
o mundo mudo
aciona o fecho
da flor
Há desilusão
mas não há
fuga
O caçador está
preso à presa
poemas de O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015):
SEGUNDO POEMA
para Paulo Henriques Britto
Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página
como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe
pra isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia
escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora
POEMAS REUNIDOS
Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes
um pouco entediados
em volta de uma mesa
como ex-colegas de colégio
como amigas antigas para jogar cartas
como combatentes
numa arena
galos de briga
cavalos de corrida ou
boxeadores num ringue
como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel de parede
●
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem
mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África como um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultas o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol
●
Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado
Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapate de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades
Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as linhas finas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia
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Perder a cabeça
e então buscá-la
nos últimos lugares
onde esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
sobre suas coxas
mornas
ainda
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Esperar horas a fio
e então desvencilhar-se
das coisas tecidas na espera
dos ponteiros do relógio
cada um mais lento que o outro
dos pelo menos dez cigarros
das poltronas de mogno
uma delas
vazia
●
Estou no dia de hoje como num cavalo
você está nas suas roupas como num navio
estamos na cidade como num teatro numa floresta na água
a tarde de terça é uma feira de bairro
nos encontramos quase por descuido
à mesa do café com sua toalha xadrez
de frente para o cinema contínuo do mar
no vagão deste mês setembro sereia sinuosa
era quente o dia era o equívoco das estações
era a música pequena da memória
estou no dia de hoje como num casaco largo demais
estou no país desta tarde estudei
na escola do enfado
você dobra a tarde como as mangas
da sua camisa branca
você desdobra a tarde como um guardanapo
lançado ao colo
você conhece os modos no que se refere às tarde
você sabe usar
os talheres da tarde
estou desconfortável no meu nome estou
na antessala do amor estou na estação
da espera queria distrair a morte
você conhece muitas coisas você sabe falar
sobre as coisas como esses bichos que conhecem
desde sempre as rotas ancestrais
como os pássaros que trazem impressos no corpo
os mapas migratórios você conhece a língua do amor
que eu soletro tão mal
MINAS
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
Como é prazeroso ler os poemas de Ana Martins Marques. Adorei!
Adorei seus poemas!
Intensa! Remeteu-me a Ana Cristina César
Adorei a materia! Parabens!!!
Belíssimas poesias