Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu 28 anos em Brasília, onde graduou-se em Direito e reside em São Paulo desde 2007. Colabora em diversos jornais e revistas, publicou os livros: Observatório do caos (Poesia, Patuá, 2017), Eles não moram mais aqui (Contos, Patuá, 2015 – 3° Lugar Prêmio Jabuti 2016), Palavra Engajada (Poesia, SP, 1989), Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, SP, 1990), Exílio (poesia, SP, 1990), Palavracesa (poesia, Brasília, 1994), O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Brasília, 1997), Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Brasília, 1997), Canção dentro da noite (poesia, Brasília, 1999), Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Brasília, 2000), Dezembro indigesto (contos, 2001 – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), Concerto para arranha-céus (contos, LG, DF, 2005), Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006), O sol nas feridas (poesia, Dobra Editorial, SP, 2011) e Moenda de silêncios, novela juvenil em parceria com Whisner Fraga (Dobra Ideias, SP, 2012). Organizou as coletâneas Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, DF, 2002), Antologia do conto brasiliense (2003, Projecto Editorial, DF) e Todas as gerações – conto brasiliense contemporâneo (LGE, Brasília, 2006).
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Observatório do caos (Patuá, 2017).
ANTECÂMARA
No leito escorraçado
pelo suor e as cartas rasgadas,
o golpe do destino.
Um sentimento amarfanhado
percorre
feito navio fantasma
as páginas do processo
que tramita
na Vara de Família.
VELHO TEMA
Vida tão igual
as ruas tão frias
os homens distantes
e sonhar é o acidente
nesse mural ignóbil
cidade de vísceras abertas
a noite abissal chegando
alimentando a soberba dos obituários
O mundo não trocou
de pele
e nos altares continuam a florescer
ofensas
simulacros
o espanto.
Jardins desidratados
sustentam caules transgênicos
e a minha inquietação
não tem a potência atômica
capaz de dinamitar o caos
POEMA EM LINHA TORTA
para Leonardo Garet
Ainda tenho medo
do chapéu de meu avô
(mas eu nunca tive avô)
de suas orelhas de abano
e seu silêncio antigo como o tempo
(feito o silêncio de seu filho)
Porém
a fumaça de seus cigarros de palha
continuam
atravessando
a sala
o quintal
a vida
interditando meus olhos
escurecendo minhas andanças
essa fuligem eterna impregnando tudo
essa dor itinerante
por saber impossível
(todavia necessária)
a utopia
Somos inquilinos do desassossego
e nessa manhã opaca
e fria
a sisudez da paisagem
esconde tantos mistérios
A janela da velha casa
revela segredos incontidos
enquanto capta o acelerado passo de um casal
em seu footing burocrático
de todos os dias
O mundo lá fora
é vício e desordem
há urgências
palavras de ordem
do tempo presente
da tecnologia presente
das competições presentes
e a Ilha de Manhattan continua intacta
queremos implodi-la com as dinamites das minas de Itabira
mas há um Atlântico a nos fatigar
Em mim
permanece uma constelação
de vazios
um mapa de varizes
a vida e seus móveis e utensílios
não parecem o que são
é preciso vivê-la
com uma faca penetrando a maçã
e o olhar desconfiando da Cruz do Calvário
De tantas entranhas
o que vamos reconhecer:
sabores ou feridas?
A matemática precária
de tantos amores
abriu uma trincheira
construiu desertos
no vazio e no silêncio
das horas mortas
trouxe a sólida
imprecisão das coisas
Anfíbia e andarilha,
a alma nutre-se do que
é migalha ou espanto
CORRENTE
Não há pressa nos rios
apesar das corredeiras
com seu repertório de urgências
Apenas novos mistérios
que neles mergulham
mal irrompe o dia
Seremos derrotados
pela verdade,
essa aflita correnteza
que implodirá
a festa da existência
a frágil iminência dos desejos
RECADO A BANDEIRA
Sim, poeta, o que eu vejo
é um beco sem saída,
nessas casas sem alvenaria moral
que tantos gemidos sussurram
e outros fantasmas habitam.
Já não basta ouvir um tango argentino
nem tentar a hemoptise
ou esperar a festa de São João
e contemplar balões
porque as almas estão poluídas
os espíritos saqueados
as mesas desérticas e sem pão
os homens perdidos e sem sono
a política e suas
inescrupulosas cachoeiras
cascateando a mentira dos séculos
Estamos sem fruto
vivendo sem futuro
nessas lixeiras a céu aberto
nesses cafés sem metafísica
coreografia de espantos.
De susto em susto
sobrevivemos aos furtos, porém
meus olhos reumáticos
não inauguram o
amanhã.
MIRAGEM
Tecelã de mistérios,
seus olhos carregam todas as eras
belvedere do qual enxergo tudo
eles me ajudam a decifrar o tigre no espelho
e a cegueira invalidando os cômodos da nossa casa
onde um dia nos deixaram sozinhos
à espera de um barco que nos levaria a outra margem
onde não haveria naufrágios
nem serpentes
nem o momento da Ave-Maria
no rádio do vizinho
prometendo o milagre que não vem.