Armando Freitas Filho nasceu em 1940 no Rio de Janeiro e estreou em 1963 com Palavras, editado por conta própria com ajuda do amigo José Guilherme Merquior. Escritor compulsivo, publicou e continua a publicar uma vasta obra poética, marcada pela ampla imaginação e musicalidade em seus versos singularmente controlados. Dada a extensão e qualidade de seus livros, resolvemos dividi-los em uma série de postagens. Confira a primeira, referente aos livros dos anos 1960 e 1970, neste link e a segunda, referente aos livros dos anos 1980, neste link.
Para a publicação de hoje, selecionamos alguns dos nossos poemas preferidos de seus três livros lançados na década de 1990: Cabeça de homem (Nova Fronteira, 1991), Números anônimos (Nova Fronteira, 1994) e Duplo cego (Nova Fronteira, 1997).
poemas de Cabeça de homem (Nova Fronteira, 1991)
NU DE VERÃO SUBINDO A ESCADA
Os dias pegam fogo logo cedo
com o mar a um palmo
e a carvoaria das montanhas:
pedra bruta batendo forte
o tempo todo no azul
de um céu aberto a tudo.
A paisagem perde o fôlego
e cada hora que roda
é um degrau a mais
para o alto, um salto
de mercúrio na escada
que uma loura em falso
sobe, movida a oxigênio
ardendo mais que a outra
natural e desmaiada
porque por baixo, por dentro
o cabelo negro ferve
forçando e ferindo
com suas flores pretas
a carne clara
desde o carvão das raízes
até o ar livre da pele
até
que o mar e o céu
se encontrem decididos
depois de tanto ensaio
a fundo perdido no horizonte.
BURACO NEGRO
No furo do telefone
sua voz não.
Hálito de vivalma
dente furioso e frio
canino instintivo
que só quer morder
– que não come –
mastiga, metálico
e cospe.
Bicho, cabeleira
raivosa, força
hidráulica, maxila
queixada, caveira
dentada cega
sem cirurgia – garra
ou qualquer coisa
que ao se abrir era doce
tentando flor
e que ao ar livre
vida adiante
se enferrujou toda
ferida
entre palavras.
SEM ACESSÓRIOS NEM SOM
Escrever só para me livrar
de escrever.
Escrever sem ver, com riscos
sentindo falta dos acompanhamentos
com as mesmas lesmas
e figuras sem força de expressão.
Mas tudo desafina:
o pensamento pesa
tanto quanto o corpo
enquanto corto os conectivos
corto as palavras rentes
com tesoura de jardim
cega e bruta
com facão de mato.
Mas a marca deste corte
tem que ficar
nas palavras que sobraram.
Qualquer coisa do que desapareceu
continuou nas margens, nos talos
no atalho aberto a talhe de foice
no caminho de rato.
GRÁFICO
Tudo por escrito
com letra selvagem
que não se aguenta na linha:
a vida faminta do instinto
desferida contra o corpo
o pleonasmo do luar
sobre o alumínio
o rádio alto
o telefone todo ouvidos
esta casa que me cerca.
Tudo por escrito
pela mão que segue
esburacando:
a escada escandida
até o último andar
esticada ao extremo
em espiral por dentro
onde o avesso não é neutro
nem feltro – é carnificina
e melancolia.
poemas de Números anônimos (Nova Fronteira, 1994)
.
Ferido de flores em muitos pontos
o jardim já começa a fugir
em perfume e disperdício
com a cor de cada cor em alta
antes de cair:
folhas que foram até o fim
e voltam sem vida ao chão original
de onde voaram, antes da primeira linha
quando nada se registrava ainda
aqui, na superfície
de encontro ao muro molhado de azulejos.
.
Parar esta beleza
que gira
metendo a mão no ventilador.
Agarro
o coquetel forte e cru de pernas
o caldo que se move e corta
agarro
com alguma coisa de lagarto
e com o que anima o outro extremo
mesclados no mesmo aparelho
descabelando, como segue
infalível, em violeta ou vinho
arrasa
quando recua para o vermelho
desacelera até o rosa, e para
na pérola da pele nua.
.
Falta amor. As plantas enlouquecem
desgrenhadas de sede
na terra seca dos vasos, e todos
os pregos são sem perdão martelados
até que as cabeças se enterrem.
Falta sangue, seu coração está longe
batendo em outra faixa que não capto
não o escuto mais nem mesmo no ódio.
Não.
.
ávidas, vazias
viradas pelo avesso.
Me despeço de uma vez
longa vida abaixo
mas não avio
nenhuma viagem ou avião.
Não me visto sequer
nem esvaneço
apenas resto
apesar do vento
que me pega de frente
e me entorna todo
pelos olhos.
Defronte, dispara
o dia lá fora
enquanto eu fico aqui
tão fixo e travado
como no começo de tudo.
é quem abre a mancha
de luar no lençol escuro
da cama. Leite de carne
infiltrado de varizes
até a boca do corpo, marca
o contorno sem espuma
a linha de giz que risca
o limite da figura vazia
o lugar onde a pose
se fixou para ninguém.
Não houve foto, flagrante
apenas câmara-ardente
e a cera de sua carne.
nem escuro – que é de sol e chuva
ar que não chega ao vento
mas entreabre a porta
um palmo
ou a encosta sem fechar
igual àquela, de Duchamp
hesitante
parada no meio do caminho
interrogativa entre dois portais
em 1927: porta de saída
de entrada, de comunicação?